Na coroa de flores lia-se: “Tributo à democracia, presidente Jair Bolsonaro“. Foi uma despedida discreta, lamentada com sinceridade num breve telefone aos familiares. Não eram exatamente amigos, mas em pelo menos um momento estiveram unidos.
Foi quando Bolsonaro, enredado em verdades inconvenientes sobre um projeto para explosões de bombas no Rio, precisou da ajuda de oficiais militares influentes para escapar da expulsão do Exército. O plano foi divulgado pela repórter Cassia Maria, de VEJA,
Entre os que o socorreram estava Newton Araújo de Oliveira e Cruz, general de Divisão, que morreu na sexta-feira (15) aos 97 anos. Ele chefiou a Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI, sucedido pela Abin) entre 1977 e 1983.
O tributo foi pessoal, até porque a biografia do veterano general na caserna não cabe numa moldura democrática.
Em doze dias completam-se 41 anos do episódio mais simbólico do ocaso da ditadura, no governo de João Figueiredo, o último dos generais-presidentes: o atentado terrorista a um show musical no Riocentro, que reuniu cerca de 20 mil pessoas e 30 artistas, promovido pela oposição ao regime.
Na noite de quinta-feira 30 de abril de 1981, duas bombas explodiram do lado de fora do pavilhão, enquanto Elba Ramalho cantava “Banquete de Signos”.
Uma delas detonou no colo do sargento paraquedista Guilherme Rosário, dentro do Puma conduzido pelo capitão de infantaria Wilson Chaves Machado. O sargento morreu, o capitão ficou ferido e sobreviveu. Serviam no DOI, a seção de repressão do Iº Exército, com jurisdição sobre os Estados do Rio, Minas e Espírito Santo.
O carro estava em movimento, o que deixou dúvidas sobre o local que haviam escolhido para a explosão. No estacionamento, seria um ato intimidador. Na porta ou dentro do show, um massacre.
Na agência central, em Brasília, Cruz soube da preparação do atentado com mais de um mês de antecedência, e repassou a informação ao chefe do SNI, o general Otavio Medeiros.
Dezoito anos depois, Medeiros confirmou, documentou e assinou diante de juiz, procurador, escrivão e duas testemunhas — todos militares — o conhecimento antecipado de Cruz sobre o ato terrorista e a difusão dessa informação pela hierarquia do governo Figueiredo.
O general Cruz negou tudo. Alegou que “soube da possibilidade de ser lançada uma bomba no estacionamento do Riocentro, por dissidentes do DOI, cerca das vinte horas do dia 30 de abril de 1981”. Estava em casa e recebeu a notícia do chefe de Operações do SNI, Ari Pereira de Carvalho.
Encarregado do Inquérito Policial Militar, o general Sérgio Ernesto Alves Conforto resolveu submeter Cruz e Medeiros a uma acareação.
Na manhã de quinta-feira 27 de janeiro de 2000, eles se encontraram numa sala no quartel-general do Exército no Rio. Medeiros reafirmou ter sido informado por Cruz “de um mês e meio a um mês” antes do atentado. Revelou, então, que “transmitiu esse conhecimento ao presidente [João Figueiredo] e ao general [Danilo] Venturini”, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República.
Ao ouvir o antigo chefe, Cruz criou “um momento de maior tensão” — anotou o encarregado do IPM. Retrucou com veemência: “Mentira!”
Medeiros devolveu: “Você não lembra?” E repetiu o repasse da informação recebida a Figueiredo e a Venturini.
Cruz se conteve. Sugeriu um “engano” de Medeiros: “Talvez o fato a que se refere diga respeito a outro evento”.
“Permaneceram em suas posições de opinião”, registrou o escrivão. Desfeita a tensão, os generais aposentados passaram a conversar sobre as coisas da vida “que os teriam afastado” da longa amizade.
A acareação terminou com Medeiros e Cruz abraçados e “emocionados” — descrevem os autos arquivados no Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília.
Os generais Cruz, Medeiros, Venturini e Figueiredo foram protagonistas desse e de outros capítulos do enredo que premiou com impunidade os militares envolvidos em atos terroristas — antidemocráticos, no sofisma corrente.
Nesse ambiente de autoproteção, o general Cruz socorreu Bolsonaro durante o processo no STM, no final dos anos 80, durante o governo José Sarney.
O capitão foi punido com 15 dias de prisão e acabou absolvido em julgamento polêmico no tribunal militar. Deixou o Exército, entrou na política e se elegeu presidente três décadas mais tarde.
Dos quartéis ao Palácio do Planalto a história da ditadura pode ser contada num passeio pelos incontáveis episódios de acobertamento.
Nas marcas de impunidade encontram-se digitais de alguns ministros do Superior Tribunal Militar durante o regime ditatorial — como demonstram as discussões sobre tortura nas Forças Armadas entre generais, juízes e advogados nas sessões secretas do STM, cujas gravações foram obtidas pelo historiador Carlos Fico e divulgadas ontem por Míriam Leitão, no Globo.