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Informação e análise
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O candidato que não pedia voto nem fazia comício, e só falava de economia

Delfim mandou como ninguém, não mandava em nada desde o fim da ditadura, em 1985, e na democracia dependia de votos, que nunca pedia por achar constrangedor

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 ago 2024, 13h54 - Publicado em 13 ago 2024, 08h00
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  • .Lula e Jair Bolsonaro -
    Com Francisco Dornelles (à esuqerda) e José Serra (ao centro) na Constituinte — (Sergio Marques/Ag Globo/VEJA)

    Alguém discursava, mas só as paredes ouviam. Os demais conversavam ou conspiravam. Na segunda fileira de poltronas, isolados no canto à direita, tempo e história pareciam congelados para o civil mais poderoso da ditadura, ex-ministro signatário do Ato Institucional nº 5, e o antigo militante comunista, preso e torturado na luta armada, agora líder do Partido dos Trabalhadores. Delfim Netto e José Genoino riam de outros ou talvez deles mesmos numa cena trivial de plenário, sob a luz invisível da democracia.

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    Delfim mandou na economia como ninguém, antes ou depois, não mandava em nada desde o fim da ditadura, em 1985, e na democracia dependia de centena de milhares de pessoas que desconhecia para renovar seu mandato a cada quatro anos. Foi deputado federal por duas décadas, o dobro do tempo em que esteve no governo. Conheceu como poucos a intimidade do poder e foi dos personagens mais influentes na redemocratização dentro do Congresso, onde valia apenas um voto entre 584 parlamentares.

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    Ganhou cinco eleições seguidas, mas era um candidato atípico. Não pedia voto, porque achava constrangedor: “As pessoas sabem que sou candidato, pedir seria ofender a inteligência delas”. Não fazia comícios, apenas palestras — média de três por dia, às vezes percorrendo mil quilômetros no interior do Estado de São Paulo.

    Só falava de temas áridos como inflação, câmbio e base monetária para plateias reunidas em salões de Rotary clube ou associações comerciais, onde as pessoas o tratavam como “professor” — raramente como “deputado” ou “ministro”, nunca “candidato”.

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    Estava sempre a bordo de um terno escuro, gravata preta sobre camisa branca. Falava, respondia perguntas, dava autógrafos e cumprimentava da mesma maneira cada eleitor na fila, sem abraços, despedindo-se com a mesma frase: “Foi uma alegria”.

    Era uma espécie de bordão que usava desde os tempos do “regime autoritário”, como se referia à ditadura. Regime era uma palavra de significado peculiar para Delfim, que oscilava entre 90 e 130 quilos cultivados com pão e mortadela defumada nas temporadas eleitorais.

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    O Estado brasileiro deveria fazer algum, acreditava, porque engordava a cada decisão esbanjadora do governo ou do Congresso. Ele continuava tentando o próprio, explicava: “Comprei uma esteira mecânica nos Estados Unidos. Nunca usei. Quando era ministro tive um negócio desses de ficar remando sem sair do lugar. É, quando tinha 14 anos remava no rio Tietê. Então, comecei a usar no ministério…” A plateia ria, imaginando a cena. “Aí, notei que remava e ficava pensando no Balanço de Pagamentos [sempre sob ameaça de déficit]. Desisti!”

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    Era da oposição, liberal, de direita, elegante e viperino. “Deve-se acreditar em ministro da Fazenda?” — uma pergunta recorrente. Ele rebatia, com o exemplo do início do Plano Real com câmbio fixo, executado 30 anos atrás pelo seu principal adversário na política e na academia, Fernando Henrique Cardoso: “Vejam a ‘humilhação’ a que submetemos o Japão. Um japonês precisa de 100 ienes para comprar um dólar e de 110 ienes para comprar um real… As pessoas acreditam. É uma ilusão de ótica. Mas somos uma sociedade simples, de crentes, e queremos crer…Não esperem mais nada do Plano Real, além da estabilidade. Não esperem mais emprego, mais desenvolvimento, isso o plano não pode dar.”

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    Certo dia de campanha, no Rotary de Votuporanga (SP), um jovem empregado do Banco do Brasil, sindicalista e militante do PT, deu vazão às apreensões com a futura batalha salarial dos bancários. Delfim respondeu-lhe com um sorriso: “O problema do Partido dos Trabalhadores é que ele só conhece o proletariado como Marx conhecia — pela literatura. O PT é contra o lucro e diz que vai criar mais emprego; ora, isso não tem a menor possibilidade de acontecer. O que vai acontecer no setor financeiro é aquilo que eu gostaria que acontecesse comigo: emagrecer. Acho que o desemprego vai reduzir a pressão salarial, mas desejo boa sorte ao senhor.”

    Às véspera de cada eleição, ouvia a mesma pergunta do mesmo jornalista: “Acha que está eleito?” E respondia sempre do mesmo jeito: “Que nada. O diabo é que, depois de tudo, você ainda não faz a menor ideia, não tem a mínima certeza de que aquelas pessoas que encontra vão lhe dar um só voto. Você sofre até o final…”

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    Acertou nas urnas e ganhou cinco mandatos de deputado, entre 1987 e 2007. Derrotado, retirou-se, sem deixar de ser referência para políticos, empresários e novos aliados, como Lula, cuja carreira política no ABC paulista começou quando se descobriu que a inflação de 1973 havia sido manipulada no Ministério da Fazenda de Delfim (o truque: aumentava-se a oferta de determinados produtos nos locais de pesquisa de preços.) Tudo sob a luz invisível da democracia. Morreu na segunda-feira (12/8), aos 96 anos.

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