Lula resgata a ideia da independência do dólar
Candidato do PT faz recauchutagem de projeto de moeda única na América Latina, proposta por um ex-presidente peruano há quinze anos
Lula fez o anúncio no comício promovido pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) para celebrar o apoio à sua candidatura: “Se Deus quiser, criaremos uma moeda na América Latina, porque não temos que depender do dólar.”
Poderia se chamar “Sul” na fórmula apresentada a Lula por Fernando Haddad, candidato do PT ao governo de São Paulo, e Gabriel Galípolo, ex-presidente do Banco Fator.
Eles argumentaram, em artigo recente, sobre a necessidade de resgate da “soberania monetária” latino-americana. Na região predominam moedas com histórico de desvalorização decorrente de sucessivos fracassos governamentais na gestão das contas e da riqueza nacionais.
Lula gostou da ideia. Ela cabe como luva no papel que desenhou com esmero para desempenhar nessa temporada eleitoral — o do velho líder popular injustiçado à procura da absolvição nas urnas.
A imagem de Lula levantando a bandeira do “Sur” ganha no imaginário petista moldura similar à da cena do Grito da Independência, e, na América hispânica, às dos retratos de Simon Bolívar, o Libertador.
A proposta recupera um dos sonhos mais caros da esquerda durante a Guerra Fria — o da independência do imperialismo dos Estados Unidos, cuja expressão de poder é o dólar, moeda internacional.
A ideia do “Sul”, moeda única latina, é politicamente oportuna para o candidato do PT que, por uma dessas trapaças da História, não consegue se distinguir do adversário imediato nas pesquisas, Jair Bolsonaro, na crítica à guerra de Vladimir Putin na Ucrânia.
Putin invadiu outro país, no delírio da restauração do antigo império russo, mas os dois candidatos escolheram responsabilizar os Estados Unidos, a União Europeia e aliados na Otan.
Enrolado na bandeira do “Sur”, Lula tem a oportunidade de recuperar a ideia de soberania num discurso eleitoral com repercussão regional, recauchutando a crítica ao imperialismo do pós- IIª Guerra Mundial.
Há uma pincelada de realismo contemporâneo na proposta do “Sul”, porque as drásticas sanções contra a Rússia, o confisco de metade (cerca de US$ 330 bilhões) das suas reservas internacionais e a exclusão de alguns bancos russos da rede mundial de pagamentos (Swift), induzem à desconfiança no sistema lastreado no dólar.
O resultado, naturalmente, é a procura por alguma diversificação. Mas isso não é novidade. Na virada do milênio o dólar respondia por 80% das reservas monetárias, agora está em 60%, informa o FMI.
Ter moeda própria, de valor global, é aspiração legítima. O problema é ter moeda com valor reconhecido. Decretar o “Sur” na América Latina não é difícil, a questão é fazer com que seja aceito na barraca de pastel do Pacaembu, em São Paulo, e na quitanda de pisco de Tacamba, na província peruana de Chota, a mil quilômetros da capital, onde só se chega por barco ou avião.
Até lá, há um longo caminho repleto de obstáculos como regras regionais comuns de liberdade e mobilidade de capital e de taxa de câmbio — detalhes essenciais, mas ainda omitidos na versão da proposta esboçada pelo PT.
Ao recauchutar a tese da moeda única, Lula poderia homenagear o ex-presidente peruano Alan García. Foi o primeiro a pôr a ideia na mesa, publicamente. Aconteceu no dia 15 de janeiro de 2007, em Quito, numa reunião de chefes de Estado que compareceram à posse de Rafael Correa na presidência do Equador. Lula estava lá.
García se suicidou em Lima, em abril 2019, para não ser preso por corrupção. Correa conseguiu asilo na Bélgica mas enfrenta acusações judiciais similares em Quito. Nos dois casos havia uma moeda comum regional — a da propina, emitida pelo Departamento de Operações Estruturadas do grupo Odebrecht.