Em nome da ordem, produziu-se apenas tumulto. O resultado é a virtual interdição da indústria brasileira de cultura e de entretenimento, que fatura R$ 500 bilhões por ano, tem 220 mil empresas e ocupa mais de cinco milhões de pessoas em todo o país.
A política pública de incentivos à cultura estancou no governo Jair Bolsonaro.
Por lei, o governo deveria destinar ao setor uma fatia (0,6%) do total da renúncia fiscal federal. É 40 vezes vezes menos do que o Estado injeta, por exemplo, nas áreas de comércio e serviços. E 20 vezes menos do que investe anualmente na indústria.
Nos últimos três anos, porém, quase nada aconteceu e acumulam-se evidências de colapso na produção independente, o motor dessa indústria.
O governo decidiu paralisar a concessão de incentivos ao setor cultural e de entretenimento, a pretexto de resolver um estoque de mais de 20 mil projetos pendentes de análise numa secretaria de Cultura, integrante do Ministério do Turismo.
Na hipótese otimista, do governo, esse trabalho de atualização do acervo burocrático consumiria os próximos três anos, ou seja, duraria até 2025.
Mais realista, o Tribunal de Contas da União estima que, no ritmo atual de trabalho, o estoque de processos somente deve ser “zerado” em 2030, isto é, dentro de oito anos.
A inapetência para solução foi admitida pelo próprio governo, em documento apresentado na véspera do Natal ao Supremo Tribunal Federal.
No ano passado eram 34 servidores designados para o exame de mais de duas dezenas de milhares de processos pendentes — vários há mais de uma década na fila de espera.
O labiríntico ritual descrito ao Supremo começa na “digitalização dos processos físicos”. Há pelo menos 14 mil, com vários volumes. Eles passam, em seguida, à “inspeção manual onde se conferem o nome do projeto, o número do processo, a situação em que se encontram”. Os dados “são inseridos manualmente em uma planilha Excel, concomitantemente à digitalização de cada processo, conferindo assim, sua correspondência [com os dados disponíveis na rede interna]”.
Detalhe relevante: novos projetos para incentivos fiscais somente são admitidos na proporção da redução do estoque existente.
Na prática, equivale à morte programada para um setor cuja sobrevivência depende da fluidez nas operações. Esse é um fator decisivo em áreas como a de produção de audiovisual onde é duríssima a concorrência estrangeira.
Exemplo: em abril de 2019, um filme da Marvel ocupou simultaneamente 2,7 mil salas de cinema, ou seja, 80% das existentes no país. Em parte, Hollywood deve seu vigor à antiga política de incentivos fiscais dos Estados Unidos.
No caso brasileiro, o tumulto provocado na indústria cultural e de entretenimento aparentemente tem motivação deliberada. Serve como biombo para um tipo de ativismo político pré-eleitoral, em muitos aspectos conflitante com a Constituição.
Há uma coletânea de evidências na centena de páginas que o governo apresentou ao Supremo, na véspera do Natal, em resposta a uma arguição judicial sobre a inércia na política setorial de incentivos fiscais.
Nelas espraiam-se 560 negativas à possibilidade de censura, sempre acompanhadas pela justificativa do “poder-dever” de um grupo de burocratas do Turismo autodeclarado militante numa cruzada pré-eleitoral de “proteção” do erário, da família, das tradições, dos costumes, da saúde pública e até da língua portuguesa contra “modismos políticos/ideológicos sem base legal”.
A inépcia em questões realmente relevantes, como a solução para o estoque de projetos pendentes, submerge na prosa amadora e mal escrita de justificativas para censura a obras artísticas que, aos olhos desconfiados dos burocratas do Turismo, não estejam dirigidas “ao Criador”; resultem “de imposição de ideologia via uma não-linguagem”; e, “imponham conduta à sociedade” — como a exigência de passaporte de vacina para ingresso em espetáculos.
O governo Bolsonaro registrou no cartório do Supremo 127 páginas de palavrório para ocultar um triênio de inépcia na gestão da política cultural.
Economizaria o tempo dos juízes do STF — e pouparia o erário — se tivesse reproduzido um “aviso” de 21 palavras distribuído em 1971 pela Divisão de Segurança do Ministério da Justiça à equipe de censores da Polícia Federal: “[As obras], salvo raras excesões (sic), são deprimentes e se constituem verdadeiros atentados à moral, aos costumes e ao pudor.”
O atraso exige alguma coerência histórica.