A CPI começou a expor a origem da falência múltipla do governo de Jair Bolsonaro no controle da pandemia.
É uma autópsia política, pública e diária. Da miríade de equívocos já expostos, um se destacou ao permear todo o depoimento de 16 horas do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, hoje no Estado-Maior do Exército: por ação ou omissão, a cúpula das Forças Armadas deixou que o governo Bolsonaro realizasse um amálgama dos seus interesses com os das instituições militares.
O desgaste institucional se tornou inevitável. É provável que historiadores localizem o pecado original na campanha de 2018, quando o então deputado federal, ex-capitão paraquedista, informou o Alto Comando do Exército sobre o seu plano de saltar da planície política para o topo do poder no Planalto.
Ainda não se conhece a extensão do respaldo da chefia verde-oliva ao candidato, mas há registro público da eterna gratidão do beneficiário em discurso: “Obrigado, comandante (Eduardo) Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por (eu) estar aqui.”
O generalato sabe o que fez nas quatro estações eleitorais de 2018, quando escolheu abstrair o passado do ex-capitão, preso e processado pelo Exército por anarquia, 33 anos antes, por causa de um plano de atentados na Vila Militar, no Rio.
Na caserna havia quem imaginava reescrever o passado, a história do regime militar de 1964, num retorno em novo formato ao papel de moderador na República. Como consequência prática, projetava-se uma expansão do orçamento militar, do patamar de 1,5% para 2% do Produto Interno Bruto.
O problema é que Forças Armadas não são instituições de governos, mas de Estado. A fusão de interesses deu errado desde o começo, agravou-se no descontrole da pandemia e levou à recente demissão dos comandantes das três Armas.
Nesta semana, resultou na exposição de um general de Exército (ex-ministro da Saúde) em ginástica retórica com o argumento da obediência cega, ou obediência devida, na tentativa de diluir responsabilidades suas e de outros oficiais, da ativa e da reserva, e de resguardar o presidente.
A tese da obediência cega, ou devida, tem histórico que vai da Alemanha de 1945 à Argentina do pós-ditadura. A ideia é de que crimes não seriam puníveis porque oficiais que cometeram haviam agido em virtude de obediência cega, ou devida.
Ontem, na comissão, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) deixou o general Pazuello em xeque, com suavidade: “O senhor certamente sabe que o Direito brasileiro, mesmo o Direito Militar, rejeita o princípio da obediência cega, correto?” O ex-ministro da Saúde limitou-se a responder: “Correto”.
Num raro acerto, o general escolheu ir à CPI em trajes civis e não fardado, como é habitual para oficiais nas ocasiões protocolares. Seria um incômodo adicional, porque depois de dois dias de depoimento saiu do plenário classificado como “campeão das mentiras”.
O ‘efeito Pazuello’, ao menos, teve a virtude de induzir a cúpula das três Forças a aprofundar a reflexão sobre o custo de se atrelar o destino institucional a um governo — tema de sucessivas reuniões nos últimos meses.
Na raiz está a permanente incapacidade militar de solucionar os problemas essencialmente políticos do desenvolvimento nacional.
Frustraram-se nisso nos anos de ditadura, como deixou claro o general-presidente Ernesto Geisel ao determinar toque de recolher aos quartéis. A preocupação de Geisel era salvar a própria instituição da armadilha da política, um jogo para civis.
Frustraram-se no governo Bolsonaro ao perder o controle da pandemia, como está sendo demonstrado pela CPI na exumação da crise, que ainda não terminou.