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Como o governo perdeu a bússola na pandemia

De olho na reeleição, Bolsonaro criou cinco núcleos burocráticos para a Covid-19 e mandou Braga Netto tocar o plano da cloroquina, mas deu tudo errado

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 Maio 2021, 12h21 - Publicado em 25 Maio 2021, 09h20

Foi o ministro Walter Braga Netto, chefe da Casa Civil da Presidência em março do ano passado, que conduziu o plano de produção e distribuição de cloroquina contra a Covid-19 em todo o país.

Braga Netto, atual ministro da Defesa, assumiu a Casa Civil no dia 18 de fevereiro de 2020. Na época  existiam apenas dois casos suspeitos de infecção pelo novo coronavírus — um em São Paulo, confirmado, e outro no Rio Grande do Sul, logo descartado. Quando ele saiu da chefia do Estado-Maior do Exército, passou à reserva e assumiu a Casa Civil, o governo já acumulava evidências de perda de controle na gestão da crise sanitária.

Jair Bolsonaro havia imposto a operação da crise em dupla frequência, sem qualquer sintonia — de um lado, o Ministério da Saúde, chefiado por Luiz Henrique Mandetta, de outro os assessores escolhidos pelo presidente.

Bolsonaro não ouvia o ministro Mandetta, nem os técnicos da área. Discutia a pandemia com os então ministros Osmar Terra (Cidadania), Onyx Lorenzoni (antecessor de Braga Netto na Casa Civil), Abraham Weintraub (Educação), Arthur Weintraub (assessor presidencial) e um dos filhos parlamentares, o vereador Carlos Bolsonaro.

Em março, a Organização Mundial de Saúde confirmou a pandemia. O debate no Palácio do Planalto passou a ser focado no cenário de uma eventual imunidade de rebanho — com mais da metade da população contaminada — e nas possibilidades de um “remédio”, a cloroquina.

A tese da imunidade de rebanho progrediu a partir de projeções feitas com base em amostras de sangue coletadas em instituição pública de Manaus. No Ministério da Saúde esse levantamento foi criticado e logo descartado pela fragilidade metodológica.

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Na Saúde, as avaliações internas indicavam um cenário oposto, de alto risco. No pior deles, o chefe do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, Julio Croda, estimou 180 mil mortes. Havia outro, moderado, indicando 60 mil mortes e um terceiro, esperançoso, de 30 mil mortes.

Essas projeções tinham a mesma premissa: rígido controle sanitário em todo país, reforçado por campanhas nacionais de distanciamento social e de higiene, o que só poderia ser levado adiante em ambiente de alguma harmonia política, de Bolsonaro com os governadores estaduais.

Bolsonaro, no entanto, estava decidido a apostar no “remédio”, a cloroquina, como propunham o deputado Osmar Terra, alguns médicos convidados ao Planalto, e Onyx Lorenzoni, agora ministro da Cidadania.

Era a alternativa política mais conveniente para lidar com o temor dos efeitos econômicos potencialmente desastrosos para sua campanha de reeleição.

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“Essa é a preocupação que eu tenho, se a economia afundar, afunda o Brasil” — disse na segunda-feira 16 de março. Acrescentou: “E qual o interesse, em parte, com toda certeza, dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder.”

No final desse dia, anunciou-se a criação de um Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19. Na coordenação figuravam o ministro Braga Netto e um de seus assessores, Heitor Freire de Abreu, subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil.

Era a quinta instância burocrática estabelecida na Esplanada dos Ministérios exclusivamente para tratar da crise sanitária, como constataram fiscais do Tribunal de Contas da União em auditoria realizada nos dias seguintes.

O comitê dirigido por Braga Netto era o corpo e a alma do governo. No papel, foi composto por sete ministérios (Saúde, Justiça e Segurança Pública; Defesa; Relações Exteriores; Economia; Cidadania; Mulher, Família e Direitos Humanos); cinco órgãos da presidência (Secretaria-Geral; Secretaria de Governo e Gabinete de Segurança Institucional; Advocacia-Geral e Controladoria-Geral da União); a agência de vigilância sanitária (Anvisa) e quatro bancos públicos (Banco Central, Banco do Brasil, Caixa e BNDES).

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Na estrutura burocrática para a Covid-19 já existiam: Comitê de Monitoramento de Eventos; Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional; Gabinete de Crise da Covid-19; e o Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública COVID-19 do Ministério da Saúde.

Essa superposição de órgãos e competências, sem clareza sobre aquilo que cada um deveria fazer, qual era a fronteira de atuação e respectivas responsabilidades, está na gênese da perda do controle governamental na gestão da pandemia. Aniquilou a capacidade de resposta, explicam auditores do tribunal de Contas em documentos entregues à CPI da Pandemia.

Braga Netto deu à opção presidencial pela cloroquina a forma de uma política pública paralela à executada pelo ministro da Saúde. Na terça-feira (17), realizou a primeira reunião do seu comitê e orientou ministérios na divulgação das ações de “enfrentamento” para “esclarecer a população”. Ao Ministério da Defesa pediu agilidade no aumento da produção de cloroquina.

Três dias depois, na sexta-feira (20) ele recebeu e despachou um pedido de dispensa de licitação para o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército comprar insumos. Na justificativa explicitou-se a utilização do remédio no tratamento da Covid-19, conforme documentos enviados pelo Ministério da Defesa à CPI revelados pelos repórteres Leandro Prazeres, do Globo, Claudia Bomtempo, Marcelo Paranhos e Paloma Rodrigues, da TV Globo.

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Na manhã seguinte, sábado, Bolsonaro divulgou nas suas redes sociais video informando que informou ao então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, sobre sua decisão de difundir a cloroquina e mandou o Exército “imediatamente ampliar a produção desse medicamento”.

O ministro da Saúde resolveu procurar o chefe da Casa Civil para mostrar as projeções sobre mortes na pandemia. A reunião foi marcada para o final da tarde de sexta-feira (27). Na sala de Braga Netto estavam Sergio Moro, então ministro da Justiça, e duas assessoras. Mandetta levou um assessor, Renato Strauss. O encontro acabou com o chefe da Casa Civil disposto a intermediar uma reunião do ministro da Saúde com o presidente.

Braga Netto sabia que o plano de fabricação e difusão da cloroquina já alcançara a linha de produção do laboratório do Exército, com a chegada dos insumos comprados sem licitação.

Março terminava com a pandemia em aceleração, com 4,3 infectados e 140 mortes. Foram 25 dias entre o primeiro e o milésimo caso confirmado. Nos seis dias seguintes foram registrados mais de três mil.

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O Exército terminou o mês com uma produção sete vezes maior do remédio para malária habitualmente distribuído aos soldados baseados na Amazônia e em áreas remotas.

Entre abril e junho, entregou ao governo 2,5 milhões de comprimidos. Nesse trimestre, o laboratório do Exército fabricou medicamento suficiente para consumo nas Forças Armadas por mais de uma década, considerada a escala de produção antes da pandemia.

O governo perdeu a bússola na gestão da pandemia e adernou no seu oceano de cloroquina.

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