Um vento frio bafejou a nuca de alguns parlamentares, na semana passada, quando defendiam mudança na Constituição para transferir terrenos de marinha da União aos estados, prefeituras e ocupantes privados. O vigor da rejeição pela sociedade, que se refere ao projeto como “PEC da privatização das praias”, incomodou o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira.
Ele se irritou: “A narrativa que estão dando não é a verdadeira. Aqui não estamos discutindo privatização de praias, é bastante diferente dessa narrativa pequena. É lamentável que uma PEC dessa relevância seja tratada dessa maneira”. Há quarenta meses no comando da Câmara, Lira já liderou a aprovação de 23 emendas constitucionais — uma alteração a cada cinquenta dias —, modificando 17% do texto da Carta de 1988 em pouco mais de três anos.
“Chega de lacração ideológica”, gritou o relator do projeto na Câmara, Alceu Moreira, deputado gaúcho do MDB: “Chega de tratar o Parlamento como se nós fôssemos irresponsáveis!”. O relator no Senado, Flávio Bolsonaro, do Partido Liberal do Rio, qualificava as críticas como “mentiras”, enquanto o senador Marcos Rogério, do PL de Rondônia, dividia os críticos entre “ignorantes úteis” e “mal-intencionados”.
Reagiam à avalanche de manifestações públicas de desconfiança, típicas das ocasiões de divórcio entre a opinião dos eleitores e o desejo dos eleitos. Sob pressão crescente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, achou melhor recomendar “cautela, prudência e amplo debate” da proposta de emenda constitucional. No léxico parlamentar costuma significar adiamento por tempo indefinido.
Manobras para suprimir o domínio da União sobre terrenos de marinha têm sido recorrentes nos últimos 156 anos, desde o decreto (nº 4 105) publicado em 22 de fevereiro de 1868, um sábado em que a frota do Império do Brasil bombardeava Assunção, abrindo o epílogo da guerra contra o Paraguai.
Já se tentou quase tudo na Câmara e no Senado — decreto legislativo (1887) e projeto de lei (1892), entre outros. A reação foi convicta, com sucessivos vetos do próprio Congresso (1893) e do governo (1896).
“A ‘privatização’ das praias mostrou o divórcio entre eleitores e eleitos”
Na sequência, o Judiciário entrou no jogo com uma série de decisões (de 1905 a 1964) validando a propriedade da União. Liquidou “a controvérsia já bruxuleante”, deixando a questão “resolvida com evidência solar”, como escreveu em sentença de seis décadas atrás o juiz Oscar Saraiva, do Tribunal Federal de Recursos, antecessor do Superior Tribunal de Justiça. E, se ainda existiam dúvidas, foram lacradas em três artigos da Constituição de 1988.
São quase 2 000 municípios com terrenos de marinha — “salgados”, na definição da Carta Régia (1678) —, banhados por águas do mar e dos rios navegáveis. É um patrimônio imobiliário à beira d’água que se estende por 48 000 quilômetros demarcados no mapa do governo federal, consideradas as reentrâncias na Amazônia, sobretudo no Pará e no Maranhão. Quatro em cada dez habitantes de capitais como Belém vivem nessas áreas, a maioria em condições sanitárias sub-humanas, sem acesso a água encanada e esgoto tratado.
É notável que há século e meio a elite política renove o debate sobre o fim da propriedade da União sobre uma riqueza patrimonial de valor inestimável, cuja dimensão continua sendo desconhecida pelo próprio dono, a União. O governo federal possui registros de 565 000 imóveis em terrenos de marinha. Mas sabe que isso representa menos de 20% do total anotado pelo IBGE no Censo de 2022.
Faltam 2,3 milhões de imóveis no cadastro oficial, admitiram funcionários dos ministérios de Gestão e de Meio Ambiente na semana passada, em audiência no Senado. No plenário, porém, ninguém se mostrou preocupado em saber as razões da incúria secular. Nem se falou sobre as novas ocupações, provocadas cada vez que se tenta exumar a ideia legislativa sepultada desde quando o Rio, na época capital federal, assistiu à inauguração de sua primeira linha de bondes.
Mais relevantes, talvez, sejam as manifestações cotidianas de parlamentares negacionistas sobre os efeitos das mudanças climáticas. Insinuam que o progresso dos “negócios”, sobretudo os imobiliários, tem primazia no mapa nacional, pontuado por desastres ambientais como a devastação do Rio Grande do Sul, as 209 000 pessoas afetadas em 28 municípios de Santa Catarina, nas últimas quatro décadas, e a seca que tem imobilizado a vida e a economia nas margens dos rios amazônicos.
O vento que varreu o Congresso na semana passada deveria ser observado como sintoma de crise do atual modelo de representação e governança. Foi um ciclone político.
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Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896