Alexandre Ramagem, diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, passou a divulgar uma das propostas do programa de reeleição do seu chefe, Jair Bolsonaro — a volta ao tempo do voto impresso.
No fim de semana, ele escreveu: “Voto auditável significa segurança ao pleito eleitoral e evolução das urnas eletrônicas. Assegura integridade e transparência aos resultados do sufrágio universal.”
Ramagem parece preocupado em demonstrar ao chefe que o apoia. É natural e talvez um esteja precisando do respaldo de outro.
A democracia dá aos eleitores o privilégio de assumir a defesa das posições do seu candidato, mesmo que sejam pelo retrocesso a um modo de fazer política antigo, no caso, ultrapassado há um quarto de século. Há quem defenda coisas ainda mais retrógradas, do retorno à monarquia à adoção da guilhotina em tribunais políticos.
O problema é quando o chefe do serviço secreto federal passa a confundir a posição de suas ideias com as ideias de sua posição.
Goste ou não, o “voto auditável” existe no Brasil há mais de 9.100 dias, com testes bienais certificados por eleitores, partidos políticos, candidatos e seus fiscais de apuração.
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Jair Bolsonaro, por exemplo, é produto eleitoral desse sistema. Dele não se conhecem queixas ou provas levadas à Justiça de ter sido roubado em votos em qualquer das eleições das quais participou nos últimos trinta anos, antes mesmo do advento da urna eletrônica.
A conversa do presidente-candidato sobre voto impresso, ou “auditável”, até hoje não passou disso, palavrório de entretenimento em campanha eleitoral. Sem provas.
Na ânsia de apoiar o chefe, não importa se com ideias fora do tempo e do lugar, Ramagem perdeu a bússola e renegou o passado da instituição que dirige. Na hipótese benigna, cometeu uma gafe. Talvez, por ignorância histórica.
Em 1976, quando Bolsonaro era um cadete sonhando em saltar de paraquedas, o Serviço Nacional de Informações (SNI), antecessor da Abin, criava uma seção de criptografia com especialistas civis, diplomatas e militares.
Eles haviam descoberto que estavam grampeadas todas as máquinas de codificação compradas pelo governo militar da empresa suíça Crypto, cujos sócios eram as agências de espionagem americana CIA e a alemã BND. Detalhes desse golpe que durou vinte anos foram revelados pelo repórter Greg Miller, do Washington Post, em junho passado.
A seção de criptografia do SNI se transformou numa empresa estatal, a Prólogo, com 350 funcionários. Ela participou do desenvolvimento da codificação das urnas eletrônicas para a Justiça Eleitoral. A Prólogo foi sucedida pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações (Cepesc), nos anos 90, quando o SNI virou Abin.
Administrando um orçamento sigiloso e custoso (mais de R$ 600 milhões por ano), o chefe do serviço secreto questiona a “integridade e transparência” do sistema eleitoral pelo qual pelo qual se elegeram o seu chefe e 584 parlamentares, com os votos de 147 milhões de brasileiros.
Evidentemente, ele não pode ser culpado se a Câmara e o Senado escolheram renunciar ao próprio poder de fiscalização e se limitam a um controle meramente protocolar das atividades de inteligência no país.
Mas Ramagem poderia, sim, contribuir com a História do voto no Brasil. Basta dar total transparência à documentação sobre episódios ainda obscuros da era do voto impresso ou mesmo da fase de transição para informatização do sistema de apuração, durante a ditadura.
Em 1982, por exemplo, agentes do SNI em Minas Gerais manipulavam boletins de votação antes que os partidos políticos recebessem. Há testemunhas, como o então jovem empregado (licenciado) da IBM Eduardo Azeredo, fiscal de urna do MDB de Tancredo Neves, eleito o 31º governador de Minas. Na década seguinte, Azeredo elegeu-se o 34º governador.
A mais célebre, por desastrada, tentativa de interferência do serviço secreto naquela temporada eleitoral ocorreu no Rio. Foi quando agentes do SNI usaram um programa de totalização de urnas para converter os votos válidos dados ao candidato a governador Leonel Brizola, do PDT, em brancos e nulos. A operação naufragou quando o candidato Miro Teixeira, do MDB, denunciou a fraude matemática e cumprimentou Brizola pela vitória. Desde a integral digitalização do processo eleitoral não se tem notícia de fraudes.
Se achar inconveniente dar total transparência às interferências indevidas do serviço secreto federal na vida política nacional, Ramagem poderia, pelo menos, consultar o inventário de bens da Abin.
Acabará encontrando o registro dos direitos da agência sobre o “algoritmo proprietário”, a solução criptográfica desenvolvida pelo Cepesc para a Justiça Eleitorado nos primórdios da votação eletrônica, nos anos 90 do século passado.
A Abin ganhou dinheiro com a invenção para a urna eletrônica e, apesar do legado ruim de alguns dos seus dirigentes, participou dos avanços na integridade do sistema eleitoral, agora em transição para a biometria.