O Brasil tornou irrelevante a sua Constituição. Promulgada há 33 anos, era para ser um conjunto de normas e preceitos essencialmente estáveis. Porém, essa estabilidade foi liquidada por 118 emendas promulgadas até junho. E haverá pelo menos mais uma ainda neste mês — a do novo “estado de emergência” na economia, com data de validade até 31 de dezembro.
A Constituição passou a ser mutável, variável, conforme a conveniência política do governo, do Congresso e do Judiciário.
Até o final do ano passado, vinha sendo alterada, em média, a cada 90 dias. Ou seja, como um periódico trimestral.
Neste ano, a metamorfose constitucional está acontecendo em velocidade muito maior: agora, as normas são modificadas a cada 60 dias, na média. As reedições do texto, revisto e alterado, passaram a ser bimestrais.
Para produzir a Carta original, promulgada em outubro de 1988, os constituintes trabalharam durante 20 meses, sem intervalo. Coletaram 72 mil sugestões, via Correios, apresentaram outras 12 mil e fizeram 19 mil intervenções em plenário, entre discursos, pareceres, discussões de matérias, questões de ordem, encaminhamentos de votação, comunicações, etc.
Na noite da última quinta-feira, no espaço de 190 minutos o Senado aprovou, em dois turnos de votação, a mais nova proposta de emenda constitucional — a PEC do estado de emergência econômica.
Na essência, ela modifica normas fundamentais da economia, como a do limite de gastos, de endividamento do setor público e de responsabilidade no equilíbrio das contas nacionais.
Nada na Constituição é trivial, incluindo as vírgulas. No entanto, a nova emenda foi apresentada, discutida e votada duas vezes em apenas três horas e dez minutos, e para valer até o último dia deste ano.
Relatório e debate do projeto foram feitos por videoconferência — cinco senadores votaram por telefone, de dentro de um avião que sobrevoava a floresta amazônica.
O texto constitucional acabou alterado num projeto com frases, palavras e vírgulas produzidas “na coxa”, notou a senadora Simone Tebet (MDB-MS).
Estavam em jogo mais de R$ 40 bilhões dos cofres públicos. Desse total, R$ 31 bilhões são destinados a 17 milhões de pessoas pobres, cadastradas pelo governo como dependentes do socorro financeiro estatal (pelos dados oficiais, o universo de pobreza extrema abriga o dobro de gente). Outros R$ 9 bilhões foram acrescentados para atender a interesses empresariais e de segmentos do eleitorado, como taxistas e caminhoneiros.
O improviso foi dominante no plenário, e perceptível em três questões recorrentes nos discursos: “Como vai ser a distribuição dos recursos?”; “Quem vai fazer; e, “Custa quanto?”
“Como a gente faz? Vai votar ‘sim’ ou vai votar ‘não’? — questionava o senador Confúncio Moura (MDB-RO), lamentando: “Temos aí, nas gavetas, uma série de projetos excelentes, maravilhosos, mofando.”
A proposta de emenda criou um precedente perigoso, comentou Jean-Paul Prates (PT-RN): “A partir de agora, governos em final de mandato vão criar caos no início do último ano, para, depois, tirar o ‘bode’ da sala e tentar uma recuperação eleitoral.”
Não há mais limites, interpretou José Serra (PSDB-SP): “A perda de credibilidade fiscal vai estimular inflação, juros mais elevados e reduzir os investimentos necessários para a geração de emprego e renda, que é a mais importante política de combate à pobreza que dispomos.” Serra foi o único a votar contra.
A PEC Kamikaze, como os senadores apelidaram, deverá ser referendada pela Câmara na próxima semana. Será a 119ª emenda, a quinta neste ano.
Constituições têm como objetivo dar estabilidade à vida em sociedade. No Brasil, a banalidade constitucional está fomentando um ambiente de insegurança jurídica crescente, com instabilidade permanente.