O país está mais dividido, fragmentado nas expectativas sobre as mudanças necessárias no padrão de vida nacional. A tradição de consenso se desvanece na sociedade enclausurada em longo ciclo de baixo crescimento econômico e de aumento contínuo nas desigualdades.
Sete de cada dez brasileiros se tornaram adultos a partir da Constituição de 1988, que completa 34 anos nesta quarta-feira, 5. Não viveram, mas estudaram, leram ou ouviram falar de um Brasil que foi caso de sucesso no mundo na maior parte dos dois séculos de independência.
A paisagem ao redor é eloquente sobre a dimensão do impasse: uma de cada três famílias sobrevive com 497 reais por mês — informa a FGV-Social com base em dados coletados pelo IBGE. Ou seja, a nova pobreza brasileira inclui 62 milhões de pessoas com renda de cerca de 40% do salário mínimo (1 212 reais).
Boa notícia nesta primavera eleitoral é a cristalização da rebeldia contra tentativas de um amálgama institucional do atraso com o tradicionalismo. É notável que o medo do futuro tenha impulsionado o voto, de forma inédita, enquanto parte dos candidatos atravessava a campanha com medo da resenha pública sobre seu passado.
O cenário político conflitivo não deve se dissipar tão cedo. Tende a ser a principal condicionante das decisões no governo e no Congresso a partir do verão. Nutre-se no empobrecimento geral, na insegurança alimentar da maioria, no aumento da violência nas cidades e em áreas onde economia do crime floresce no vácuo do Estado brasileiro.
A Amazônia, por exemplo, concentra 23% dos municípios onde mais se mata. São cidades pequenas, com menos de 100 000 habitantes, dominadas pelo banditismo apoiado em redes de interesses locais, hierarquizadas e conectadas ao mercado financeiro, responsável pelo ciclo da lavagem de dinheiro, a legalização dos lucros do tráfico de drogas, de terras, de madeira, de animais e de minerais — ouro, diamante, cassiterita, urânio e manganês, entre outros.
“Está cada vez mais estreita a margem de erro do próximo governo”
A Amazônia se estende por mais da metade (59%) do mapa nacional e abriga treze de cada 100 brasileiros. No entanto, foi abduzida na disputa presidencial, assim como a saúde, a educação, a segurança pública e a política econômica, temas essenciais à vida em sociedade.
De um lado, acenou-se com mais do mesmo, a persistência no método errático de governo entre a impossibilidade política e a incapacidade administrativa. De outro, exibiu-se um deserto de ideias sobre o futuro, com omissões deliberadas e justificadas até como “tática” de campanha. Disso resultaram situações inusitadas, como o anúncio de retirada de propostas de governo desconhecidas e até sigilo sobre um programa econômico jamais divulgado.
Os brasileiros se destacam pelo ceticismo, mostra a sondagem anual que o grupo Edelman realiza em 28 países há duas décadas. Apenas 35% consideram o governo capaz de coordenar esforços entre instituições para resolver crises.
Entre o caos pandêmico e a retórica golpista, a maioria (59%) passou a ver no governo uma “força desagregadora”. Reflete o tamanho do fiasco da coalizão capitaneada pela extrema direita nas urnas de 2018: jogou pela janela chance ímpar de fazer um governo competente.
A oposição, curiosamente, refugiou-se na dicotomia do “bem” contra o “mal”. Atravessou mais de um ano na liderança das pesquisas estimulando voto contra um governo e não a favor de um projeto para o país, que segue desconhecido. Limitou-se a prometer um futuro de volta ao passado, que julga esplendoroso.
A realidade é dissonante. O divisionismo consolidado na campanha só agrava a cacofonia num sistema de representação política asfixiado pelo corporativismo anárquico, que se move no governo e no Congresso exclusivamente em torno de privilégios no Orçamento público.
Além disso, a eleição termina num panorama de situação econômica externa nada favorável, com sobra de previsões de recessão em 2023 e em meio a uma guerra europeia de sequelas imprevisíveis. Se confirmado o recesso global, naturalmente vai afetar o caixa do país, dependente (cerca de 40%) das vendas de produtos minerais e agropecuários.
Está cada vez mais estreita a margem de erro do próximo governo. Olhando-se ao redor, na América do Sul, pode-se verificar uma tendência à queda rápida nos níveis de aprovação dos presidentes empossados não faz muito tempo (Chile, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Argentina, por exemplo). Única certeza possível sobre o que virá a partir de janeiro é: não vai ser fácil.
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Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809