Bolsonaro e Pazuello são investigados por excesso de surrealismo
Acusados de prevaricação, omissão e negligência, presidente e ex-ministro começaram o fim de semana sob investigação do Ministério Público Federal
Apareceu um pastor, “conferencista da Paz mundial”, como ele se apresenta. Juntou-se ao cabo da Polícia Militar de Minas Gerais. Ofertavam aos oficiais militares no comando do ministério nada menos que 400 milhões de doses de imunizante. O bilionário contrato para compra de vacinas seria feito com uma empresa dos Estados Unidos, já processada pelo governo do Canadá por tentativa de estelionato: ela nunca fabricou nada, era um bazar de materiais de construção.
Se a cena fosse no Rio, seria vista como uma versão climatizada da paisagem desenhada em versos no samba “Largo da Carioca” pelo trio Kleber Rodrigues, Adilson Bispo e Zé Roberto, gravado por Zeca Pagodinho:
Pintou de repente na linha de frente
Um punguista que agora é pastor
Ganhando dinheiro dizendo que é
Um novo salvador.
Tem um craque que brinca com a bola
E quer desbancar o Pelé
E um outro que mesmo sem braço
Faz da laranja o que quer (…)
Passei por ali, parei e curti
E sinceramente gostei.
Com todo respeito
É de fazer inveja ao Orlando Orfei.
O enredo de surrealismo, porém, aconteceu na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a 1.500 quilômetros de distância do Largo da Carioca.
Os protagonistas não faziam parte de uma trupe mambembe ou de camelôs de pano-de-chão, do tipo que tange os tímpanos de pedestres serpenteando numa praça ensolarada, na contínua busca de algum trocado para garantir o dia.
Eram homens engravatados — vendedores de ilusões, de um lado, e administradores públicos, do outro lado do balcão —, negociando dentro do Ministério da Saúde de um país devastado pela pandemia de Covid-19, com mais de 522 mil pessoas mortas até à noite de ontem, um número 3,7 vezes maior que o de vítimas da bomba atômica em Hiroshima durante a IIª Guerra Mundial.
Responsáveis pelo sistema público de saúde, o então ministro Eduardo Pazuello, general da ativa, e seu secretário-executivo Elcio Franco, coronel na reserva, deixaram o ministério ser transformado numa espécie de camelódromo na emergência sanitária do ano passado. Nele, desfilavam desde reverendo-conferencista da Paz mundial e cabo da PM vendendo vacinas inexistentes em nome de empório de material de construção, até “carreata” de políticos “pedindo dinheiro” — na descrição de Pazuello —, porque “todos queriam um pixulé no final do ano”.
A autópsia desse desastre administrativo está sendo feita em sessões públicas da CPI da Pandemia, mas alguns começam a ser responsabilizados na Justiça pelo descontrole governamental na disseminação do vírus da Covid-19, que prossegue pela escassez de vacinas.
Jair Bolsonaro e o ex-ministro Pazuello, agora abrigado na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, começaram este fim de semana na condição de investigados pelo Ministério Público Federal.
Bolsonaro por crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal com punição de três meses a um ano prisão e multa para funcionários públicos que “dificultem, deixem de praticar ou atrasem, indevidamente, atos que são obrigações de seus cargos, os pratica contra a lei, ou apenas para atender interesses pessoais”.
Pazuello por improbidade administrativa, sujeito ao confisco ou indisponibilidade de bens pessoais. É acusado de omissão, negligência e atuação ilegal na Saúde. Em vez da ciência e da técnica, escreveram os procuradores, o ex-ministro escolheu tomar decisões “por força de influências externas”, em “comportamento doloso ilícito”, deixando “perfeitamente configurado o ato de improbidade administrativa que, em última análise, é a deslealdade qualificada da conduta do agente público frente ao cidadão a quem deveria servir”.
A opção pela cloroquina, em vez da vacina, deixou a saúde pública à deriva. O governo perdeu tempo e energia na resistência a contratar imunizantes atestados, produzidos por empresas reconhecidas e qualificadas, enquanto se mostrava receptivo às ofertas ilusórias de ambulantes dos empórios de fraudes, amparados por aliados ansiosos pelo “pixulé”, nas palavras do ex-ministro.
Bolsonaro e Pazuello agora são investigados por excesso de surrealismo no desgoverno durante a pandemia.