O estilo Bonnie & Clyde da execução do empresário Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, que delatava crimes do Primeiro Comando da Capital (PCC) e de policiais civis de São Paulo (ocorrida no dia 8 do mês corrente) em plena luz do dia, no desembarque do Aeroporto Internacional de Guarulhos, provocou, resumidamente, duas constatações extremamente preocupantes – para não dizer desesperadoras — sobre a atual situação da segurança pública no país.
A primeira é o nível de audácia e desassombro com que as facções criminosas estão agindo hoje em dia. A delinquência organizada cresceu, se fortaleceu e está totalmente fora de controle do poder público, e as quadrilhas estão conquistando novos espaços. Agora também avançam sobre grandes fatias de mercados legais e atividades econômicas estratégicas (como o de combustíveis) assim como financiam candidaturas políticas para cargos eletivos nos poderes Executivo e Legislativo, nos três níveis da administração pública: municipal, estadual e federal. Nessa toada, não tardarão a influenciar a escolha de membros (desembargadores) dos Tribunais de Justiça.
E essa situação de descontrole não se resume apenas a estados como São Paulo ou Rio de Janeiro. Grande parte do Brasil — com raras exceções — vive algo parecido com o que Chicago vivenciou nos tempos conhecidos como Prohibition, período em que esteve vigente a malfadada Lei Seca (entre 1920 e 1933). O crime organizado pululando polícias, juízes e políticos na sua folha de pagamento.
A segunda constatação, também evidenciada pelos contornos da execução de Gritzbach – inclusive, uma das muitas causas desse pico no recrudescimento do crime organizado –, é o nível de comprometimento de inúmeras polícias estaduais com “bicos”, desvios de conduta, atividades ilegais, cumplicidade e envolvimento com os próprios crimes perpetrados pelas facções.
As investigações que envolvem Gritzbach escancaram, em especial, uma grande diversidade de condutas reprováveis por parte de policiais – tanto militares como civis. Há agentes da lei atuando como seguranças privados do próprio empresário executado, há alguns como suspeitos de seu assassinato, há ainda outros atuando como extorsionários, e também como envolvidos com as próprias atividades criminosas das quadrilhas. Enfim, em um roteiro que compreende diversos crimes violentos, graves e complexos, onde a polícia deveria atuar com todo o afinco e profissionalismo possíveis, parece haver mais policiais transgredindo do que fazendo a lei ser cumprida.
Lamentável é também perceber como o “bico” é tolerado nas polícias estaduais. E essa atividade é a porta de entrada para transgressões mais graves: num dia o agente faz segurança de um empresário, no outro faz de um bicheiro…
Ao fim, as atividades privadas fazem com que a polícia passe a ser o “bico” para o policial. Trata-se de um prática absurdamente contraproducente e contra o interesse da sociedade e do próprio bom funcionamento das instituições policiais.
Atualmente há casos onde policiais fardados, com viaturas oficiais, em horário de expediente, deixam de atender chamados de emergência, de pessoas que estão em perigo, porque estão engajados em serviços privados de segurança: “bicos”.
E onde estão as corregedorias que não farejam nada errado quando agentes com salários de menos de 10 mil reais são sócios de empresas que faturam centenas de milhares de reais? Com tantas suspeitas e tantos desvios de conduta, por que não há investigações patrimoniais rigorosas sobre investigadores, agentes e delegados?
E às vezes nem precisamos ir muito longe para encontrar pistas inequívocas de enriquecimento ilícito de nossos agentes da Lei. No pátio das unidades onde os policiais estacionam seus carros podemos perceber marcas e modelos incompatíveis com os salários dos seus condutores…
Essa situação me faz lembrar de um cartaz que vi em uma visita a uma unidade da Scotland Yard, em Londres, que dizia “The individuals who undermine the police from within are a greater threat than those we target” (“Os agentes que minam a polícia por dentro representam uma ameaça maior do que aqueles que alvejamos”, em tradução nossa). Isso nos faz concluir que, gostemos ou não, detectar e expulsar um policial corrupto é mais relevante do que detectar e prender um criminoso. Isso porque, o bandido com distintivo, além de cometer seus próprios crimes, ainda nos impede de prender os bandidos da rua, muitos dos quais são, inclusive, seus associados. Um policial desonesto tem o poder de destruição de vários criminosos de fora.
Bom lembrar que a Polícia Federal, poucos anos antes de iniciar o seu período das mega operações repressivas (entre 2001 e 2003), realizou dezenas de investigações (e inquéritos) de assuntos internos, quando detectou e reprimiu, cortando na própria carne, um grande número de agentes e delegados corruptos.
As operações Anaconda, Sucuri, Planador, Vassourinha, entre muitas outras, foram deflagradas em unidades em que os desvios de conduta ocorriam acima da média da corporação, como Rio de Janeiro, São Paulo e Foz do Iguaçu. Esse período foi determinante para o desenvolvimento e amadurecimento institucional que ocorreu em seguida na PF, com o aprimoramento da capacidade de investigar e atingir de forma estruturada e sistêmica os andares mais altos da criminalidade.
A prisão de uma dúzia de policiais desonestos têm um impacto profilático tremendo em uma corporação. Uma sequência de operações que alvejam policiais corruptos tem o potencial não apenas de inibir centenas de futuras transgressões, como também de empoderar e encorajar a banda (maioria) honesta da corporação na produção de bons trabalhos policiais. A depuração e valorização do nome e do distintivo da força é o que de fato idealiza os seus integrantes. Definitivamente a PF não teria logrado, em seguida, desenvolver as operações que prenderam poderosos e apreenderam muitos milhões de dólares cash, se não tivesse passado por esse processo.
As polícias estaduais – tanto as civis como militares – têm ótimos quadros, novas gerações extremamente capacitadas e motivadas, que poderiam capitanear trabalhos de assuntos internos eficientes e conduzir processos de depuração de seus quadros. Para isso é necessário que os governantes estaduais tenham boa vontade para escolher as pessoas certas para comandar suas polícias. Não se pode envolver política com polícia. As políticas locais (com as suas assembleias legislativas) têm exercido uma influência deletéria sobre as corporações policiais.
A bem da verdade, a degradação da classe política tem responsabilidade nas crises que envolvem segurança pública e desvios e desmandos das polícias. O caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes é um claro exemplo desse flagelo.
Por oportuno, a PEC da Segurança Pública, do ministro Ricardo Lewandowski, lamentavelmente terá dificuldades em conseguir algum sucesso nesse estado de coisas. Se essa depuração das polícias não for incluída no pacote não teremos como superar a crise. Se não tivermos polícias confiáveis não poderemos compartilhar informações sensíveis nem estabelecer cooperação aberta. As operações repressivas estarão em risco. Mesmo que tenhamos grupos especiais de combate ao crime organizado nos ministérios públicos (os GAECOs), as ações podem ficar comprometidas, pois quem enfrenta o crime são as polícias; quem tem contingente para operacionalizar a repressão, em buscas, prisões, barreiras, cercos e batidas, são os policiais. A polícia é fundamental para o enfrentamento da delinquência. E para vencermos nesse enfrentamento não podemos estar vulneráveis.
Uma boa parte da solução do problema será encaminhada com a valorização, fortalecimento e priorização das corregedorias das polícias — como medida precursora.
Caso contrário, será como alguém que quer se curar de uma doença respiratória e vai se tratar com um pneumologista tuberculoso, que tosse e lança micróbios sobre o paciente, contaminando-o ainda mais…
Não podemos simplesmente seguir fingindo que esse problema não existe. Temos que olhar com realismo esses últimos casos e concluir que precisamos endereçar medidas eficazes e urgentes, não só para controlar os desvios das polícias e depurá-las de forma estrutural, mas também para melhorar a remuneração dos policiais. Quem entrega um trabalho tão relevante para a sociedade e para o país, tem que contar com um bom plano de carreira, e receber um salário que valha a pena e recompense seus riscos e desgastes.
Finalmente, me desagrada muito voltar nesse tema – que enseja interpretações equivocadas de todos os lados — mas se a Operação Lava Jato não tivesse sido enfraquecida e desconstruída, e o movimento moralizador que ela ensejava totalmente esvaziado, não estaríamos vivenciando essa situação aguda e crítica de contaminação generalizada pela criminalidade. Afinal, a busca pela Justiça e por integridade se faz de cima para baixo. Exemplos têm que vir do alto. Esse “salve-se quem puder” que estamos assistindo é filho do fracasso da sociedade — como um todo — em enfrentar a impunidade crônica do nosso sistema processual penal. Foi perdida ali uma rara janela de oportunidade.