Aias andam em duplas, para que vigiem uma à outra; depois de meses caminhando juntas para o mercado todos os dias, Ofglen e Offred não trocaram mais do que duas dezenas de frases feitas, que nada traem dos seus pensamentos – coisas como “Deus nos mandou bom tempo” e “Hoje temos laranjas”. O espectador, porém, sabe o que vai pela cabeça de Offred (Elisabeth Moss), porque sua narração descreve todo o tempo, com humor cortante, as minúcias do mundo bizarro e avassalador em que ela vive desde que os Estados Unidos foram desmantelados numa revolução fundamentalista e reconstruídos, em parte, como a República de Gilead. Na volta do mercado com Ofglen (Alexis Bledel), Offred olha os cadáveres de três enforcados expostos na rua e comenta com o espectador: “Um padre, um médico e um homossexual; já ouvi essa piada antes, mas não era assim que ela terminava”. Há algumas semanas, finalmente, com atraso de quase um ano em relação à estreia nos Estados Unidos, o Paramount Channel começou a exibir no Brasil aquela que foi a grande série de 2017: The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia, um pesadelo totalitário tão abrasivo e cheio de humor negro, e composto em tanto detalhe, que assisti-lo é quase como estar num parque temático de um mundo que deu uma volta muito errada para trás.
Entre os inúmeros aspectos interessantíssimos da série, há um que merece ser ressaltado. Sempre que o espectador tiver a tentação de classificá-la como ficção científica, alegoria ou especulação surreal, vale lembrar que a escritora canadense Margaret Atwood escreveu o romance O Conto da Aia, em 1985, inspirada em grande parte em um exemplo concreto e contemporâneo de retrocesso: a Revolução Iraniana de 1979, que transformou o país de costumes modernos num Estado islâmico de zelo medieval e imediatamente tratou de amordaçar as mulheres – a começar por aquelas que haviam apoiado ativamente a revolução (a certa altura, vê-se que Serena Joy, a dona de Offred, foi uma dessas mulheres traídas pela nova ordem e rigorosamente postas de escanteio). A outra inspiração de Atwood foi o crescimento do ultraconservadorismo religioso americano; se esse pessoal um dia ganhasse a parada nos Estados Unidos, como ganhara no Irã, que cara teria a sua revolução fundamentalista?, perguntou-se a escritora.
O criador de The Handmaid’s Tale, Bruce Miller, vem de séries de segunda linha (muitas delas com viés de ficção científica) como The 4400, Eureka, Alphas e Os 100. Vê-se agora que ele andava precisando de liberdade criativa e amparo financeiro como os que lhe foram dados pela plataforma de streaming Hulu, que produziu The Handmaid’s Tale: Miller aqui faz até melhor que no livro de Atwood ao optar por uma direção impressionista, cheia de planos fechados em detalhes dos corpos dos personagens ou, ao contrário, abertos em composições geométricas do cenário estranho que é a República de Gilead. Os elementos visuais contrastantes e a decisão de ancorá-los sempre em Elisabeth Moss – num desempenho estupendo – aliviam as facetas mais panfletárias do livro de Atwood, transformando-as na experiência subjetiva e pessoal de Offred.
Até dois ou três anos antes, Offred se chamava June e tinha emprego, amigas, marido. Agora, a lei proíbe as mulheres de ler (no supermercado, não há etiquetas, só figurinhas), de andar sozinhas, de trabalhar fora de casa, de votar, de ter qualquer tipo de cargo. São todas recatadas e do lar. Não necessariamente do próprio lar, porém: June tem uma filha (que foi tirada dela), e isso a torna especial. Por causa de uma deterioração ambiental, cada vez menos mulheres são capazes de dar à luz um bebê vivo, que dirá saudável; a maioria da população se tornou estéril. June tem fertilidade comprovada, e por isso Gilead a transformou numa aia – uma classe de mulher cuja única finalidade é reprodutiva. As aias são designadas para os casais da elite e, uma vez por mês, numa cerimônia de desconforto indescritível, copulam com seu Comandante na presença da esposa dele. June pertence ao comandante Fred Waterford, e por isso agora se chama Offred (“of Fred”, ou “de Fred”). A série causou desde que o Hulu começou a exibi-la. E virou furor quando, no decorrer de 2017, as denúncias de assédio em Hollwood deflagaram movimentos como o #MeToo e o #TimeIsUp. Em manifestações mundo afora, viam-se mulheres vestidas como as aias, com sua versão vermelho-sangue do traje puritano do século 17, e uma frase em latim inventado tirada da série (“Nolite Te Bastardes Carborundorum”) virou palavra-de-ordem. Fica mais legal ainda quando Offred descobre o que a frase quer dizer e encerra um episódio com um grito de guerra dentro da própria cabeça: “Nolite te bastardes carborundorum, bitches”.
Mas reduzir The Handmaid’s Tale aos seus contornos feministas é perder uma parte importante da experiência. Mais atuais ainda na Gilead da série são o seu clima de extrema insegurança e o seu patrulhamento ideológico ferrenho: ninguém, nesse novo mundo, ousa dizer o que pensa. Seja qual for a coloração do fervor e a justificativa para ele, a dissensão é o que ele mais detesta e o que pune com mais violência. Em uma entrevista à época do lançamento do livro, Margaret Atwood observou que é uma falácia a história de que os puritanos cruzaram o oceano para se estabelecer na Nova Inglaterra, nos anos 1600, para fugir da perseguição religiosa: eles migraram para poder perseguir-se a si mesmos e aos outros quanto quisessem, ponderou a escritora. Gilead, enfim, é sempre um impossível que, quando menos se espera, acontece.
E, só para avisar, nos Estados Unidos a segunda temporada estreia daqui a pouco, em 26 de abril.