No último dos dez episódios de Ozark, a nova série que a Netflix acaba de disponibilizar, um personagem se prepara para cometer o mais impensável de todos os atos: fiquei verdadeiramente chocada, e também cheia de admiração por uma série que se dispõe a ir tão longe nas consequências de uma decisão infelicíssima – a que o protagonista Marty Byrde, consultor financeiro com um pequeno escritório em Chicago, tomou dez anos antes, de aceitar lavar dinheiro para um cartel mexicano de drogas (“o segundo maior cartel mexicano”, ele especifica sempre, com seu afeto pela precisão). Interpretado com bravura e compromisso férreo por Jason Bateman, cuja carreira renasceu e floresceu com Arrested Development (ele foi astro juvenil, teve os habituais problemas com drogas e grana, tomou jeito e virou uma figura muito interessante de Hollywood), Marty sempre foi um sujeito correto e metódico. Ele é, antes de mais nada e acima de tudo, um pai de família. Essa foi a racionalização dele ao aceitar o convite – se é que essas coisas podem ser chamadas de convite – de Del Rio (Esai Morales), o representante do cartel: que alívio seria nunca mais chegar ao fim do mês sem dinheiro para pagar a hipoteca, a escola dos filhos, a prestação do carro. Basta fazer benfeito, pensa Marty, e eliminam-se ao desprezível as chances de algo dar errado.
Imagino que essa etapa da racionalização seja comum às pessoas que, tendo estado sempre dentro da lei, decidem ir para o lado de lá. Ou levar vida dupla, com um pé cá e outro lá, como é o caso de Marty: resolve-se que é por uma causa justa ou um bem maior, e varrem-se as objeções para um quartinho nos fundos da consciência. Pactos com o demônio, porém, têm o inconveniente de que o demônio inventa novas regras conforme elas lhe convêm. De onde Ozark começa (em um dos quatro excelentes episódios dirigidos pelo próprio Bateman, que é também produtor da série) com Marty num duplo impasse: ele acaba de receber provas irrefutáveis – e muito explícitas – de que a mulher o trai. E seu sócio, sem seu conhecimento, decidiu tirar uma casquinha do cartel.
Com um barril de ácido já à espera do seu cadáver (mesmo), Marty convence Del Rio de que pode lavar dinheiro com muito mais presteza, e mais longe da lei, em Lago das Ozarks, no Missouri – e assim Marty, sua mulher Wendy (Laura Linney, ótima como sempre), a filha adolescente Charlotte (Sofia Hublitz) e o filho pré-adolescente Jonah (Skylar Gaertner, maravilhoso) pegam o que podem e se mudam no mesmo dia para o interior profundo do Missouri. Um balneário popular no verão, fora de temporada Lago das Ozarks reverte inteiramente ao seu ciclo natural de ignorância, violência, alcoolismo e miséria. No começo, achei que ia ver mais uma exploração do exotismo do caipira branco e pobre americano. Rapidamente, porém, Ozark transformou essa impressão inicial: a ignorância, a miséria, a violência e o alcoolismo fazem parte da equação, mas ela é bem mais extensa. O tema central da série é como diferenças de instrução, de inclinação política e de qualidade no tratamento nos dentes não mudam o fato de que, da maneira como se vive hoje, não existe ninguém que não deva, não tema e não tenha de prestar contas a alguém. Mais: da maneira como se vive hoje, a economia legítima e a ilegítima, as pessoas de bem e as de mal – tudo está imbricado e interligado de maneiras insuspeitas. (Atenção à briga que Jonah compra com a professora na escola: ela é muito elucidativa, além de um ótimo exemplo da excelência com que Ozark maneja diálogos casuais com notável substância narrativa.)
Enquanto Marty tenta adquirir negócios falidos na cidadezinha para poder lavar a fortuna do cartel, o círculo vicioso vai se ampliando e se espraiando. Ele passa a incluir desde uma figura trágica como a jovem e miudinha aspirante a criminosa Ruth (Julia Garner, destaque absoluto do elenco) até um casal aterrorizante, interpretado por Peter Mullan e Lisa Emery. Entram nele o tio inútil de Ruth e um agente do FBI com sérios problemas de freio emocional; um corretor de imóveis humilhado pela mãe castradora e uma dona de hotel que não aguenta mais o fracasso; um velho à morte e um pastor idealista – e por aí vai. O movimento da série, porém, não é só lateral. É vertical também: não só cada vez mais gente entra ou é apanhada nas repercussões da mudança de Marty para Lago das Ozarks, como essas repercussões ficam cada vez mais graves, drásticas e, às vezes, insuportáveis. Basta um passo, diz Ozark, para se ir da terra firme ao abismo.
Se alguém vê alguma semelhança entre a premissa da série e a de Família Soprano ou de Breaking Bad – bom, achar o próximo Breaking Bad virou o santo graal da TV americana, e não há dúvida de que Ozark está se candidatando à vaga. Mas eu diria que, à sua maneira terrivelmente tensa e sem catarse, Ozark refina o conceito dessas duas grandes séries: não é só um estudo das agruras domésticas e ansiedades financeiras do criminoso de médio escalão, porque o aplica a um protagonista que, ao contrário de Tony Soprano e de Walter White, não é nem se descobre vilão no caráter. Marty Byrde não tem índole de bandido: vive em estado de medo intenso, não leva jeito para a violência e suporta sua ansiedade (e que ansiedade) com uma resignação de monge. Ele não adquire nenhum gosto, enfim, por fazer mal ou por reunir poder, nem perde a sua empatia e decência básicas para com os outros (Ruth, que se aproxima dele para poder matá-lo e ficar com o dinheiro do cartel, logo acha nele o pai que quis sempre ter). Mas, além de adorar o desafio intelectual que o crime lhe propôs, Marty é excelente contador, investidor, administrador e – o principal – é um pai de família com um senso indestrutível de responsabilidade. Tudo que Marty faz, ele faz guiado por sua ética de trabalho, e pela família – e com ela, e também com a família dos outros. É fascinante, e abalador.