Um ministro tinha ficado de levar a avó na aeróbica, o outro não estava podendo e todos estavam, sei lá, meio cansados; o feriadão emendado de dez dias (por lei) a que a corte tem direito já a partir de hoje provavelmente não seria suficiente para que seus integrantes se recuperassem de uma jornada noite adentro. Melhor dar um tempo. Depois da Páscoa a gente volta. Desse jeito, José Padilha não tem mesmo como errar: vi os três primeiros episódios de O Mecanismo ontem à noite, amargurando mais esse dia desajuizado, e foram redobradas a frustração e a exasperação na sequência – muito bem montada, aliás, com controle perito do ritmo – em que Roberval (Giulio Lopes), superintendente da PF no Paraná, faz o que pode para melar a operação simultânea em três cidades da delegada federal Verena (Caroline Abras). A cada novo desenvolvimento (por exemplo, os agentes federais que vão comer um lanchinho no bar e deixam o alvo escapar), Roberval ameaça: “Vou cancelar!”. Ou anuncia: “Melhor parar!”. Ou, ainda, repreende: “Não é assim que se faz!”. A esta altura da nova série de Padilha para a Netflix (disponível na íntegra a partir de hoje), ainda não sei se Roberval está a soldo de alguém, se é negligente ou se é meramente um tipo acovardado que não quer balançar o barco – ou todas as três coisas, o que é provável. Só sei que Roberval não quer fazer o trabalho pelo qual o contribuinte lhe paga. Isso, a delegada Verena também sabe. Tanto que, para conseguir fazer seu trabalho, Verena tem de esconder do chefe um dos alvos da operação. Ele não trabalha, e também não quer – ativamente e com empenho – que ela trabalhe. Padilha sabe tomar o pulso do Brasil e diagnosticar seus males como nenhum outro. Em caso de dúvida, basta rever Tropa de Elite, que já completou dez anos de idade, à luz da intervenção no Rio de Janeiro; se tivesse sido lançado esta semana, não poderia ser mais pertinente. Mas não é só a visão de Padilha que conta. Parte do que faz sua dramaturgia ressoar com a plateia é isso, seu talento para criar na tela brasileiros tão vivamente autênticos quanto Roberval. Sejam quais forem os motivos do superintendente da PF, o seu modus operandi é velho conhecido seu, meu e nosso. Todo dia, quase sem falha, há um Roberval no meio do caminho do cidadão.
Em O Mecanismo, PF quer dizer “Polícia Federativa”, e não “Polícia Federal”. Todos os nomes e siglas foram trocados. Mas todos são igualmente velhos conhecidos do espectador, desde que o escândalo do Mensalão estourou, em 2005, e por vias tangenciais acabou desembocando na Operação Lava Jato. A série começa antes, em 2003, quando o delegado federal Marco Ruffo (Selton Mello) pega o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz) com a boca na botija, mas é obrigado a deixá-lo escapar. Ruffo é o único personagem central inventado especificamente para fins dramatúrgicos. Você não vai ter nenhuma dificuldade em identificar Ibrahim, ou o juiz Rigo, o diretor da “Petrobrasil” João Pedro Rangel, a presidente Janete, a refinaria de Antonio & Lima, a empreiteira Miller & Bretch – e mais uma lista infindável de figuras públicas e outras tantas que foram expostas, dos seus recônditos nos bastidores, para o noticiário. Acho um tantinho óbvio demais o uso de “Bichos Escrotos”, dos Titãs, na trilha, mas não há como negar que casa bem com o enredo (a trilha original de Antonio Pinto, aliás, é excelente).
Nesses três primeiros capítulos, a tese central de O Mecanismo – a de que o Brasil é uma engrenagem de corrupção que gira, expande-se e se perpetua em todos os níveis, em todos os governos – ainda está sendo delineada, e não sei dizer com quanta garra ela será defendida até o oitavo e último episódio. Acredito que com muita garra: com seu estilo caracteristicamente propulsivo estabelecido desde o primeiro episódio, Padilha, assim como nos Tropa de Elite e em Narcos, tem uma capacidade notável de organizar uma narrativa que se desdobra em múltiplas frentes sem nunca deixar a peteca cair (e é preciso fazer justiça ao roteiro muito bem estruturado de Elena Soarez, que escreveu também Cidade dos Homens, Xingu e a pequena joia que é Vida de Menina). Padilha e os outros diretores da série – Felipe Prado e Marcos Prado, que produziram os dois Tropa de Elite com ele, e Daniel Rezende, de Bingo – são craques na tensão também, e às vezes O Mecanismo é de roer as unhas: mesmo quando se sabe qual o desfecho que determinado evento teve na verdade, sente-se aquela crença irracional de que, se na ficção ele terminar de outro jeito, talvez então a história real possa ser reescrita, com as devidas e infelizmente tão distantes correções.
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