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Isabela Boscov

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O garimpo da semana: O Adversário

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Por Isabela Boscov Atualizado em 11 jan 2017, 16h19 - Publicado em 24 Maio 2016, 15h00
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    Daniel Auteuil brilha com um personagem (aliás, verídico) de gelar o sangue

    É preciso um certo esforço para encontrar este filme, mas vale a pena. Para mim, ele está entre os mais memoráveis da produção francesa da década passada. A história é aterradora: um caso real de vida dupla tão extremo e inexplicável que dá calafrios a ideia de que tanta gente possa conviver durante tanto tempo com uma pessoa sem ter a menor ideia de quem ela é verdadeiramente. O desempenho de Daniel Auteuil é ainda mais estupendo que de costume: não é fácil interpretar com essa riqueza um personagem que, no fim das contas, não passa de um enorme vazio. E a direção de Nicole Garcia consegue ser ao mesmo tempo austera, rigorosa, e cheia de presságios. Se você prefere entrar no filme às escuras, sem saber do que se trata (e não é má ideia), então pare por aqui; acredite em mim e saia à cata dele (O Adversário foi, sim, lançado em DVD pela Europa, mas já faz um bom tempo). Se você quiser saber um pouquinho mais, leia logo abaixo a resenha que publiquei quando o filme entrou em cartaz aqui, em 2004. Mas só leia a outra resenha lá do fim, sobre o livro em que o filme se baseia, se quiser saber bastante.


    O Filme


    Dupla face

    Num desempenho arrasador, Daniel Auteuil expõe uma farsa que fez fama na crônica policial

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    Na vida pública, Jean-Marc Faure, o protagonista de O Adversário, é pesquisador na área de cardiologia da Organização Mundial de Saúde, como atestam sua família e seus amigos, alguns deles íntimos desde os tempos da faculdade de medicina. Todos os dias, porém, quando sai para o trabalho e deixa em casa a mulher e os dois filhos pequenos, ele dirige a esmo, para em algum acostamento e passa o dia todo ali, dentro do carro – isso há quinze anos. O salário que Jean-Marc traz todos os meses é na verdade fruto das retiradas constantes que ele faz dos investimentos que seus pais e sogros confiaram a ele – sem o conhecimento deles, obviamente. Em algum momento do segundo ano de universidade, por alguma razão, Jean-Marc entrou em curto-circuito e não fez seus exames. Sem conseguir seguir adiante nem voltar para trás, iniciou a farsa que, no momento em que o filme o flagra, já se metamorfoseou em algo muito além disso. Nem interiormente Jean-Marc tem mais outra identidade que não essa. Assim, quando ela começa a ruir, ele passa primeiro por uma fase de negação da catástrofe iminente, manobrando dinheiro de uma conta para outra, de forma a tentar cobrir os rombos que abriu nelas. Depois, com um desespero que mal é capaz de discernir, ele protege sua mentira com uma série de crimes monstruosos.

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    Dirigido pela atriz francesa Nicole Garcia, O Adversário se baseia na história verídica de Jean-Claude Romand, que em 1993 entrou com estrondo para a crônica policial francesa. Calcado numa interpretação arrasadora de Daniel Auteuil, o filme se torna tanto mais assustador pela austeridade com que Nicole conduz a desintegração do personagem. Não há aqui nenhuma tentativa de explicação para os atos de Jean-Marc ou para a falha interna que os originou – o próprio Romand, ao que tudo indica, nunca soube o que se passou com ele. Só o que se pode fazer é acompanhar, com impotência semelhante à das pessoas que cercam o falso médico, o desenrolar de um mal que nem ele próprio supunha estar ali.

    Isabela Boscov
    Publicado originalmente na revista VEJA em 21/07/2004
    Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
    © Abril Comunicações S.A., 2004

    O ADVERSÁRIO
    (L’Adversaire)
    França/Suíça, 2002
    Direção: Nicole Garcia
    Com Daniel Auteuil, François Cluzet, Géraldine Pailhas, Emmanuelle Devos, François Berléand


    O Livro


    Inimigo íntimo

    Em O Adversário, a história verídica de um homem que durante anos fingiu uma vida, e então matou a família para ocultar a verdade

    Um autor de ficção que desejasse inventar para um personagem uma vida dupla dificilmente se sairia melhor do que o francês Jean-Claude Romand – que não era nem escritor nem qualquer outra coisa. A partir de seu segundo ano na faculdade de medicina, quando perdeu um dos exames finais, Romand começou a inventar uma mentira que terminaria por se constituir em sua vida real. Primeiro, escondeu dos colegas que faltara à prova e que já não fazia mais parte do curso. Continuou a freqüentar as aulas, “formou-se” e alardeou ter arrumado emprego na Organização Mundial de Saúde (OMS) como pesquisador graduado. Casou-se com a farmacêutica Florence, teve uma filha e um filho e formou um círculo de amigos em sua cidadezinha, colada à fronteira francesa com a Suíça. Todas as manhãs, beijava a família e saía para trabalhar. Desse momento até retornar para casa, Romand existia em seu limbo secreto. Às vezes, atravessava mesmo a fronteira e entrava, como visitante, na OMS, onde assistia a palestras ou recolhia impressos gratuitos que largava no banco de trás do carro. Noutros dias, parava num acostamento qualquer e ali ficava, hora após hora, lendo publicações médicas, comendo sanduíches ou cochilando. O dinheiro de Romand vinha de seus pais, sogros e outros parentes. Ele dizia que, como funcionário da OMS, tinha direito a investimentos especiais em bancos suíços. Pegava as economias deles e, com elas, sustentava um estilo de vida compatível com o de um cientista que tem na agenda encontros com ministros. Romand alimentou essa ficção durante cerca de quinze anos, sem que nem Florence desconfiasse dele. Quando suas acrobacias financeiras ameaçaram delatá-lo, ele matou a mulher a bordoadas, assassinou os pais e os filhos a tiros e ateou fogo à casa, julgando que morreria no incêndio. Mas sobreviveu e foi desmascarado, num episódio que estarreceu a França – e que o escritor Emmanuel Carrère reconstitui, desde suas origens nebulosas, em O Adversário (tradução de Marcos de Castro, editora Record).

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    Emmanuel Carrère se correspondeu assiduamente com Romand antes e depois de seu julgamento. Pelo desatino do crime, e por ter nascido de uma interação direta e prolongada com o criminoso, O Adversário é freqüentemente comparado ao clássico A Sangue Frio. Mas nem com muita boa vontade se poderia equipará-lo à investigação do americano Truman Capote sobre o massacre de uma família. Capote entrevistou toda e qualquer pessoa que tivesse alguma ligação com o caso, revirou o passado dos dois assassinos e esteve cara a cara com eles em dezenas de ocasiões. Com um deles, chegou a desenvolver uma estranha amizade, repleta de sobretons sexuais e oportunistas. Ao fim dos quase seis anos em que se debruçou sobre o trabalho, havia produzido uma obra sem precedentes: a reconstituição de um crime verdadeiro que não se baseava nem no sensacionalismo nem na exculpação social dos criminosos, como era regra nesse gênero (que desde o século XIX se provara dos mais populares). Capote refez o trajeto psicológico, por assim dizer, que terminou por levar todas aquelas pessoas a se encontrarem, de forma terrível, numa mesma hora e lugar – e inaugurou, com isso, toda uma nova vertente da literatura dedicada ao crime verdadeiro.

    É nesse sentido, então, que O Adversário pertence à categoria de A Sangue Frio. Embora a reportagem de Carrère seja muito menos extensa que a de Capote, e seu senso crítico quanto a seu personagem bem menos aguçado, a missão que seu livro se propõe, e em grande medida cumpre, é a de compreender como Romand, criado por gente austera e honesta, chegou aonde chegou.

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    O retrato que emerge de sua pesquisa inclui isolamento dentro da família, inadequação sexual (vários amigos se recordam de que Florence rompera o namoro com Romand, a certa altura, por sentir aversão a seu corpo “úmido” e “balofo”, e sabe-se lá a que mais) e mitomania avançada: mal inventava uma mentira e Romand já se convencia dela. Mas o autor lembra que, durante todo esse tempo, Romand agiu também como um escroque comum, que roubou o dinheiro de pessoas idosas e crédulas. É nas ocasiões em que essas duas dimensões – a da perturbação mental e a da desonestidade – se sobrepõem que o livro é mais bem-sucedido. E são elas, também, que explicam o título escolhido por Carrère. A expressão “o adversário”, em seu sentido bíblico, designa não um oponente comum, mas o maior de todos – Satã, ou simplesmente o mal. Um inimigo que Romand não quis, não pôde ou não soube combater.

    Isabela Boscov
    Publicado originalmente na revista VEJA em 09/05/2007
    Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
    © Abril Comunicações S.A., 2007
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