Dani recebeu uma mensagem assustadora de sua irmã problemática. Nem ela nem os pais atendem suas ligações, mas a jovem tenta não ceder ao desespero: ela teme que Christian (Jack Reynor), seu namorado, já tenha se cansado de tantas crises. As piores suspeitas de Dani estão corretas. Em uma cena horrível no seu silêncio e na sua crueza, vê-se o que se passou com sua família. E fica-se sabendo também que é só por causa disso que Christian ainda não teve coragem de romper com ela; ele é de fato infantil e covarde — tanto que é por meio dos amigos dele que Dani fica sabendo que o grupo pretende passar um mês na Suécia, nos festejos pastorais da comunidade em que Pelle (Vilhelm Blomgren) cresceu e que serão úteis à tese de um dos rapazes sobre as tradições europeias do solstício de verão. Interpretada pela fantástica Florence Pugh, a atriz inglesa que magnetizou Lady Macbeth com sua força há três anos, Dani é presa de vetores antagônicos — luto e desejo de curar-se dele, solidão e vontade de vencê-la, curiosidade e circunspecção, suavidade e coragem. Essas correntes serão decisivas nos acontecimentos que os amigos vivem a partir de sua chegada a Halsingland, onde são recebidos por uma centena de pessoas vestidas em roupas brancas, felizes a ponto da demência e obedientes a uma ordem arcaica. Não são apenas os cogumelos alucinógenos distribuídos em boas-vindas que tornam tudo tão estranho; há algo de profundamente excêntrico no coração de O Mal Não Espera a Noite — Midsommar (Midsommar, Estados Unidos/Suécia, 2019), que estreia no país nesta quinta-feira.
Midsommar é uma extensão natural e a antítese de Hereditário, com que o diretor Ari Aster se lançou no ano passado: rodado em um campo idílico sempre a sol pleno, ele é na essência um filme sobre uma mulher que escolheu mal o parceiro e prepara-se para se libertar dele — da mesma forma como Hereditário tratava de outra crise de relacionamentos, a deterioração de uma família. Mas, nos dois casos, as tramas vêm envoltas numa camada espessa de ritual, superstição, sobrenatural e insanidade que as coloca numa perspectiva muito diversa: não é em um cenário corriqueiro que o drama vai se desenvolver, mas em um contexto incerto e desorientador. Aster não tem medo de correr riscos alarmantes com suas narrativas e, às vezes, Midsommar descamba para a tolice — mas, quando acerta seus golpes, o faz em cheio, de tal maneira que até as flores da guirlanda de Dani parecem ameaçadoras.
+ LEIA MAIS: “It”, um filme diabolicamente fraco
Esse é um estratagema antigo do cinema, mas desde o excepcional A Bruxa, de 2015, ele vem ganhando novo impulso: trata-se do terror com fortes elementos antropológicos — ou “horror folclórico” (veja o quadro abaixo). A categoria é fluida, mas em geral se aplica a enredos passados em cenários rurais isolados, em que vigem regras com influência religiosa ou ritualística. Em Midsommar, os ritos pagãos do solstício de verão são levados a extremos surpreendentes e não raro chocantes — e é do contraste entre beleza bucólica e terrores atávicos ou violência brutal que o gênero tira seu poder. Os exemplares vêm proliferando, do alemão Hagazussa (2017) e do israelo-ucraniano A Lenda de Golem (2018) a, em breve, um Gretel & Hansel que mergulhará numa fonte que nunca se esgota: os medos e perturbações ancestrais que cada espectador carrega consigo para o cinema, e que o novo terror antropológico explora com o mesmo gume com que os contos de fadas enchiam as crianças de pesadelos.
SOB O PODER DA SUPERSTIÇÃO
Alguns exemplares ilustres do “horror folclórico” de ontem e de hoje
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652