Marie (Kaitlyn Dever) acorda com um homem mascarado que a amarra e então a estupra enquanto aponta uma faca para a sua cara. Marie chama a polícia; a polícia vem, pede que ela conte tudo o que aconteceu em detalhe – e então pede de novo, e de novo, e de novo. No hospital, durante o exame de corpo de delito, Marie tem de contar a história mais uma vez, e outra. É chamada várias vezes à delegacia, e interrogada vezes seguidas. A essa altura, Marie, esgotada, apavorada e traumatizada, já começou a confundir um detalhe ou outro: ela soltou as amarras antes de fazer o telefonema ou depois? O estupro durou dois minutos ou cinco? Ela já não tem certeza – e os dois detetives, que já começavam a descartar o relato dela, jogam-no fora de vez quando descobrem que Marie, que mal fez 18 anos, teve uma infância de abuso e maus-tratos e foi criada “no sistema”, indo de um lar adotivo para outro. Uma das mães temporárias dela reforça as dúvidas dos detetives, dizendo que ela é “complicada” (e como não seria?) e gosta de “chamar a atenção” (que, na verdade, nunca teve). Apesar das evidências físicas de agressão, Marie é pressionada pela polícia a negar sua queixa e a assinar uma confissão dizendo que inventou tudo – e é então processada por falso testemunho.
O primeiro dos oito episódios de Inacreditável, minissérie disponível na Netflix, é uma pedreira: franzina e aparentando ter no máximo 16 anos, Kaitlyn Dever faz uma composição brilhante de Marie, sem melodrama nem rasgos. Suas notas dominantes são o temor, a insegurança e sobretudo a incredulidade com a atitude cada vez mais hostil dos dois detetives e a maneira como – de novo – a burocracia e a autoridade são usadas para apequená-la e colocá-la no seu lugar. Tachada de mentirosa, além disso, Marie vê sua vida inteira desmoronar. E então, a partir do segundo episódio, que começa três anos depois, em um lugar longe dali, vê-se no que resultaram essa brutalidade casual da polícia e a sua resistência a investigar o caso: por acaso (acaso mesmo), duas detetives de cidades diferentes do Colorado percebem que podem estar às voltas com um estuprador serial que age de modo muito peculiar e tem grande conhecimento de como não deixar provas atrás de si. Elas não fazem ideia de quem seja Marie – o caso dela foi eliminado dos autos. Mas o espectador deduz sem margem para dúvida que se trata do mesmo homem, e que Marie provavelmente foi a primeira vítima dele; desde então, ele evoluiu muito em violência – agora os estupros duram horas – e, digamos assim, em técnica forense.
Inacreditável é baseada em uma reportagem ganhadora do Pulitzer, o prêmio máximo do jornalismo americano, e carrega ainda algumas marcas da sua origem – por exemplo, em diálogos cheios de estatísticas que não soam nem muito verossímeis nem muito ágeis. Também é um lugar-comum que as duas detetives sejam personalidades diametralmente opostas: Karen Duvall (a maravilhosa Merritt Wever) é doce, paciente, tenaz, religiosa e uma resoluta mulher de família; já Grace Rasmussen (Toni Collette) é boca-suja, impaciente, cética, confrontadora, usa jaqueta de couro e adora carros. Mas as interpretações – todas elas, e o elenco é enorme – são tão boas, e o caminho que as detetives percorrem para tentar identificar o estuprador é tão fascinante, que essas ressalvas se tornam quase insignificantes. Inacreditável é, ainda, interessantíssima na forma como revela as limitações processuais da polícia e, o mais importante, suas limitações humanas, que são de várias ordens – começando pelo simples despreparo para uma determinada situação e culminando com o preconceito ativo contra certas vítimas, que às vezes são desqualificadas por motivos de uma futilidade incompreensível (uma das mulheres estupradas é meio natureba e mística, e o policial encarregado do caso decide que ela não é digna de crença). No caso, Inacreditável fala especificamente das razões pelas quais as mulheres não são levadas a sério. Mas não é difícil concluir quantas coisas podem pesar contra uma vítima ou uma testemunha na sala de uma delegacia, e assim contribuir para deixar à solta alguém que deveria urgentemente ser preso.