Em condições normais, a raiva de Jen já é uma coisa espetacular. Nos últimos meses, desde que ela perdeu o marido em um atropelamento com fuga, essa cólera ficou sulfúrica: a insegurança de criar os dois filhos sozinha (um adolescente e um pequeno), o medo de não dar conta das finanças com um único salário, a sensação de abandono, a tristeza – tudo isso, Jen projeta numa busca furiosa pelo motorista desconhecido que virou sua vida de ponta-cabeça. Na delegacia de seu bairro de Los Angeles, ela já ganhou fama de louca. Os filhos pisam em ovos perto dela. O sócio dela no negócio de venda de imóveis tem paciência e compreensão, mas nem tanto que elas não estejam perto de acabar. Só quem parece ser imune à volatilidade do luto de Jen, talvez por ser tão distraída (e persistente), é Judy, a moça que Jen conhece em um grupo de apoio e que diz estar lá porque perdeu o noivo. Não é bem assim: o noivo está vivo, mas a coisa é complicada. Judy mente, mas tem perdas que são de verdade. Ela atrai rolo e confusão, mas é uma doçura. Fala pelos cotovelos, mas tem algo a dizer. Não sabe onde tem a cabeça, mas o coração está no lugar certo. E Judy tem, também, um baita segredo, do tipo explosivo, possivelmente imperdoável e capaz de gerar um bocado de suspense. Mas, papo vai papo vem, Jen e Judy viram melhores amigas – e Disque Amiga para Matar, uma série em dez episódios que estreou há pouco na Netflix (e que implora por uma segunda temporada o mais rapidamente possível), é das poucas coisas que já vi que não idealizam, maquiam, adoçam nem traem a representação de uma amizade feminina.
Ao contrário: fiquei pensando por que a amizade de Jen (Christina Applegate) e Judy (Linda Cardellini) soa tão possível e tão autêntica. Meu palpite é que elas são diferentes a ponto de o instinto competitivo ter sido eliminado da equação – e também no fato de estarem ambas muito sozinhas e necessitadas de apoio desinteressado e alguma leveza. Para Judy, tão titubeante, perdida e conciliadora, a franqueza meio brutal de Jen, sua objetividade, sua incapacidade para o sentimentalismo e e sua independência espinhosa (nada a irrita tanto quanto manifestações de solidariedade ou de compaixão) são algo novo, positivo e encorajador. Para Jen, a capacidade de Judy de se deixar levar pelo momento, de não buscar controle e de aceitar o que a vida manda é, também, uma novidade que ela não compreende muito bem, mas que a intriga e interessa. Na visão da criadora da série, Liz Feldman, assim, essa afinidade imediata entre as duas protagonistas talvez lembre mais um casamento, no qual as duas partes dividem papéis e funções, do que aquele estereótipo vendido para consumo das moças que se encontram nas “girl nights” e trocam confidências.
Faz toda diferença, também, o fato de Christina Applegate e Linda Cardellini serem umas fofas – e ótimas atrizes, com muita tarimba para fundir drama e comédia numa mesma cena (às vezes, numa mesma fala). Ambas tiveram começos dramaturgicamente bem modestos: Christina foi Kelly Bundy, a filha adolescente, burrinha de tudo e perfeitamente irresistível, na fantástica (e fantasticamente bagaceira) Um Amor de Família, de 1987 a 1997. Alguns anos atrás, foi chamada por Will Ferrell e Adam McKay (que provavelmente morriam de amores por ela nos tempos de Kelly Bundy) para fazer os dois O Âncora, e foi assim redescoberta como uma comediante nata e muito versátil – e Ferrell e McKay é que produzem Disque Amiga para Matar. Já Linda foi a Velma de Scooby Doo, e pouco a pouco estabeleceu a reputação de uma atriz capaz de qualquer coisa; sempre em papéis secundários, teve desempenhos memoráveis em O Segredo de Brokeback Mountain, por exemplo (como a mulher de Jake Gyllenhaal) e em Mad Men, como a vizinha de prédio que vira amante de Don Draper. Elas não poderiam ser mais merecedoras de uma chance como esta, e não poderiam também ter estilos mais diversos. E talvez por isso, da mesma forma que suas personagens, elas se afinem tão bem: divindo a cena, elas não competem – elas somam.