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Corra!

Namorado negro, família branca: não é drama social, é filme de terror. E dos bons

Por Isabela Boscov 17 Maio 2017, 17h40
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  • Já de começo, os coros sinistros de vozes anunciam que coisas terríveis irão acontecer quando o fotógrafo negro Chris Washington (Daniel Kaluuya) colocar os pés na propriedade dos Armitage, os pais de sua namorada, Rose (Allison Williams). Mas que coisas, exatamente? Os Armitage são os perfeitos americanos brancos e liberais, e nem piscam quando veem que o sujeito que saiu do carro é de outra cor. Servem chá gelado, conversam conversas inteligentes, mostram a casa – imensa, no meio de um bosque. Assim como Rose avisou, seu pai (Bradley Whitford), um neurocirurgião, e sua mãe (Catherine Keener), uma psiquiatra com mania de hipnotizar as pessoas para que deixem de fumar, não são racistas; são só meio sem noção. O pai se põe a chamar Chris de “my man” e a dizer que, se houvesse re-reeleição, teria votado em Obama uma terceira vez. A mãe é muito hospitaleira, mas rola um clima entre ela e os empregados negros e, vá lá, estranhíssimos – um caseiro forte e quieto (Marcus Henderson) e uma governanta (Betty Gabriel) de pérolas e laquê. Seja como for, a essa altura eu já estava com a nuca tão arrepiada quanto a de Chris: que tem alguma coisa muito fora de lugar nessa situação toda, isso tem mesmo.

    Corra!
    (Universal/Divulgação)

    Corra!, do diretor e comediante negro Jordan Peele (da dupla Key & Peele), é uma beleza: funciona mesmo como terror, e continua funcionando quando parte para a sátira. Mas o que o torna diferente é que tanto o terror quanto a sátira estão a serviço de um dos comentários sobre racismo mais contundentes que já vi no cinema. Corra!, na verdade, parodia um marco do otimismo: Adivinhe Quem Vem para Jantar?, de 1967. Com o movimento pelos direitos civis pegando fogo, o cinema pôs lenha na fogueira com a história de um casal branco, rico e chique que primeiro se chocava, e depois se encantava, quando sua filha trazia o noivo negro para conhecê-los. (É verdade que o noivo era uma covardia; qualquer um se encantaria com Sidney Poitier.) A ideia da família inter-racial ainda era escandalosa para a maioria dos americanos, mas o filme se punha sem reservas a favor dela. Passados exatos cinquenta anos, Jordan Peele defende que o otimismo foi precipitado, ou até completamente equivocado. Argumenta, inclusive, que certas coisas ficaram ainda piores.

    Corra!
    (Universal/Divulgação)

    Rose não para de pedir desculpas pelas gafes da sua família, mas Chris está se sentindo como um bicho de zoológico no meio de tanta condescendência, curiosidade e insinceridade. No dia seguinte, quando outros casais idênticos aos Armitage aparecem para um coquetel no jardim, a coisa se torna intolerável. E também intrigante: Chris tem certeza de que conhece o rapaz negro casado com uma senhora branca quarenta anos mais velha, mas não sabe dizer de onde. E tem também a sensação de que foi hipnotizado por mamãe Armitage na noite anterior, porque só de pensar em cigarro já sente repulsa. Acha, inclusive, que ela enfiou várias outras coisas mais em sua cabeça, mas não sabe definir o quê. Corra! não tem dúvida: negros de fato ficam paranoicos quando se veem em situações controladas por brancos – e têm ótimos motivos para isso.

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    Corra!
    (Universal/Divulgação)

    Terror em geral dá dinheiro mesmo. Dá dinheiro até quando é ruim, e mais ainda quando é competente e original. Mas quando, além disso, tem uma ideia forte e que a plateia de qualquer lugar do mundo consegue reconhecer como autêntica, aí vira fenômeno – como Corra!, que fez de Peele o primeiro diretor negro a estrear na função com bilheteria superior a 100 milhões de dólares (rodado ao custo de 4,5 milhões, o filme já está nos 215 milhões de arrecadação). E a ideia que Corra! propõe é que gosta de ser enganado quem pensa que o politicamente correto resolve qualquer parte que seja do preconceito. Pior: a correção política na verdade pode ser um ótimo jeito de camuflar um tipo de exploração mais sutil, mas até mais predatório. Em Corra!, os brancos têm mais modos do que tinham no tempo de Adivinhe Quem Vem para Jantar?, mas não necessariamente têm mais escrúpulos: continuam se servindo dos negros com a mesma sem-cerimônia utilitária com que, dois séculos atrás, os traficavam e punham para plantar algodão – só que hoje estão interessados é na sua força criativa, na sua aura cool, na sua aptidão atlética. Às vezes, argumenta Corra!, os brancos até convidam os negros para a festa, sim. Mas só quando é para incluí-los no cardápio.


    Trailer

    CORRA!
    (Get Out)
    Estados Unidos, 2017
    Direção: Jordan Peele
    Com Daniel Kaluuya, Allison Williams, Catherine Kenner, Bradley Whitford, Marcus Henderson, Betty Gabriel, Caleb Landry Jones, LilRel Howery, Stephen Root, Lakeith Stanfield
    Distribuição: Universal
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