É como se todos os acontecimentos trágicos de Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato nunca se tivessem passado: de cabelo armado, saia rodada e saltinhos, Wanda (Elizabeth Olsen) troca tiradas espirituosas e beijos com Vision (Paul Bettany) e, antes que ele saia porta afora para o trabalho em um escritório, lembra-o de trocar seu rosto de androide por uma fisionomia humana. É uma vida perfeita, em uma casa perfeita de um subúrbio perfeito da década de 50, no preto e branco leitoso da TV da época. Fossem os atores outros, e poderia ser apenas mais um episódio de uma das sitcoms pioneiras do fim dos anos 50 e começo dos 60, como Leave It to Beaver ou The Dick Van Dyke Show (aos 95 anos, Van Dyke prestou consultoria aos produtores). Ou ainda de A Feiticeira, já que esse é o nome de super-heroína de Wanda — que, no primeiro episódio de WandaVision (Estados Unidos, 2021), aliás, usa seus poderes mágicos para improvisar um jantar formal para o chefe de Vision, embora com uma atrapalhação que faria a Samantha da atriz Elizabeth Montgomery corar de vergonha.
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Por parte dos roteiristas da primeira série da Marvel para a Disney+, porém, não se veem trapalhadas: dos cenários decalcados dessas séries ao humor censura livre mas deliciosamente abilolado, e do ritmo da edição ao excelente timing cômico dos atores, WandaVision consegue a façanha de fazer o que se poderia chamar de uma cópia genuína — e de, aos poucos, introduzir nesse ambiente sinais de que as coisas não são o que parecem: que faceta é essa do Universo Marvel, ou “Marvelverso”, em que esse casal tão marcado pelo drama e pela perda foi parar? “Há algo errado aqui”, diz Vision para Wanda a certa altura. E, no final do segundo episódio (a partir daqui, os inéditos estreiam às sextas-feiras), quando um dos sinais dessa estranheza se torna bastante visível, o casal se vê despachado para a fase seguinte das sitcoms, a de títulos como The Brady Bunch e A Família Dó-Ré-Mi. No decorrer dos nove episódios, Wanda e Vision se verão ainda em seriados típicos dos anos 80 e 90, como Três É Demais e Roseanne, e até darão testemunhos à câmera como em The Office (veja o quadro).
O MARAVILHOSO BAÚ DA TV
As inspirações garimpadas por WandaVision, das sitcoms pioneiras dos anos 50 e 60 aos formatos inovadores mais recentes, como o The Office
LEAVE IT TO BEAVER (1957-1963)
June e Ward Cleaver (Barbara Billingsley e Hugh Beaumont), pais do traquinas Theodore (Jerry Mathers), são a idealização do casal do subúrbio americano. Ao lado de The Dick Van Dyke Show, Beaver é a inspiração inicial de WandaVision
A FEITICEIRA (1964-1972)
Samantha (Elizabeth Montgomery) usa bruxaria para salvar o marido, Darrin (Dick York), das trapalhadas — e das sabotagens de sua mãe, Endora (Agnes Moorehead). Em WandaVision, uma vizinha se chama Agnes, em homenagem à atriz
THE BRADY BUNCH (1969-1974)
Carol (Florence Henderson), viúva com três filhas, casa-se com Mike (Robert Reed), viúvo com três filhos — e todos moram juntos, mais a empregada Alice (Ann B. Davis). Em alguns episódios, WandaVision reflete os arranjos mais livres dos anos 70
TRÊS É DEMAIS (1987-1995)
Danny (Bob Saget) perde a mulher e, para criar as três filhas, pede ao cunhado rock’n’roll e ao melhor amigo que se mudem para sua casa. A balbúrdia das famílias reais começa a dar as caras em seriados como este e o anárquico Roseanne
THE OFFICE (2005-2013)
Adaptada da série inglesa homônima de Ricky Gervais, a versão americana, com Steve Carell, popularizou o estilo “mockumentary”, ou falso documentário — um recurso que WandaVision vai imitar nos episódios finais
Há um considerável abismo temporal entre os fãs dos filmes da Marvel e os espectadores que acompanhavam os passes de mágica da feiticeira Samantha para esconder seu segredo dos vizinhos enxeridos ou salvar seu marido de confusões. Desde antes da estreia, portanto, o projeto avalizado pelo todo-poderoso Kevin Feige vem dividindo opiniões. Um time crê ser um erro romper tão drasticamente com o habitual, e outro time julga que a ruptura representada por WandaVision é uma escolha brilhante, por deixar claro que as séries da Marvel na Disney+ não serão uma versão requentada e mais barata dos filmes, mas sim algo novo, audacioso e tão obrigatório quanto a produção de cinema. Se a expansão promovida por The Mandalorian no universo Star Wars puder ser tomada como medida, haja vista o sucesso que faz entre os fãs (leia reportagem na pág. 74), não há dúvida: WandaVision põe a Marvel/Disney+ na trilha certa.
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Como já foi muito alardeado, o Marvelverso prepara uma ocupação em massa da Disney+ a partir daqui. Em 19 de março entra na plataforma, à taxa de um episódio por semana, a minissérie em seis partes The Falcon and The Winter Soldier. Seguindo o mesmo esquema, em maio é a vez de Loki, em que o deus da trapaça interpretado por Tom Hiddleston aparece cercado de personagens inéditos. Perto do fim do ano estreiam Ms. Marvel, com a primeira heroína muçulmana do Marvelverso, e Secret Invasion, em que o Nick Fury de Samuel L. Jackson e o Skrull Talos de Ben Mendelsohn repetem a parceria de Capitã Marvel. Em datas ainda a ser determinadas, estão previstas também as séries Hawkeye, She-Hulk, Armor Wars, Moon Knight, Ironheart e I Am Groot, entre vários outros projetos em consideração.
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Assim, enquanto a Netflix aposta no fator novidadeiro, prometendo um filme original e inédito por semana durante todo este ano, a estratégia da Disney+ é quase o seu oposto: à parte uma ou outra estreia avulsa de impacto, como a animação Raya e o Último Dragão, ela investe em tornar a audiência dependente de programas pingados aos poucos e engatados uns nos outros. Os números sugerem que ambas podem estar certas: a Netflix continua a crescer, mas até 2022 a Disney+ já terá se equiparado a ela no número de assinantes em todo o mundo. Esta vai ser, de fato, uma batalha de gigantes.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722
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