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“Califado”, da Netflix: um outro tipo de infecção

Série sueca trata de como o extremismo islâmico mira em jovens vulneráveis para recrutar novos adeptos – mas tem muito a dizer sobre a pandemia também

Por Isabela Boscov Atualizado em 26 mar 2020, 20h32 - Publicado em 26 mar 2020, 19h38
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  • Em Estocolmo, a policial Fatima está na geladeira por ter causado uma confusão para a chefia, e decide recuperar as boas graças seguindo uma trilha de possíveis atentados de extremistas islâmicos à capital sueca. A trilha é muito vaga, mas esquenta quando Fatima recebe o telefonema de Pervin, uma jovem sueca de origem turca que caiu no conto de sedução do Estado Islâmico e agora está em Raqqa, na Síria, desesperada com a insanidade da lei religiosa. Pervin já cansou de ver que, para uma mulher, qualquer coisa pode ser considerada transgressão, e tem pavor de que por uma dessas o marido a mate e/ou a filha de quatro meses seja tirada dela. Arriscando a vida, então, Pervin arruma um celular e liga para Fatima: quer ajuda para fugir de um lugar onde é proibida até de sair à rua. E, para conseguir essa ajuda, arrisca mais ainda a vida, espionando o marido, que é terrorista do Estado Islâmico, para descobrir informações sobre os possíveis atentados. Também em Estocolmo, enquanto isso, Sulle, de 16 anos, uma perfeita adolescente que revira os olhos quando o pai ou a mãe dizem alguma coisa, está caindo no mesmo conto em que Pervin caiu lá atrás, e está começando a enxergar o mundo de cabeça para baixo. Na realidade invertida de Sulle, a Suécia persegue cidadãos de origem muçulmana, seu pai é um infiel porque não quer saber de conversa de religião em casa, sua mãe é uma mulher oprimida porque não pode cobrir a cabeça, e Israel e a CIA é que botaram abaixo as Torres Gêmeas, como pretexto para uma guerra contra o Islã.

    Califado
    (Netflix/Divulgação)

    Sulle acaba de ser infectada por um vírus para o qual não tem anticorpos, porque é desinformada (como muita gente, ela acha que o noticiário “mente” e que a verdade está no WhatsApp e em vídeos do YouTube), porque está na idade em que se é naturalmente insatisfeito e disponível para a ideia de rebelião e porque seus pais, imigrantes iranianos que viveram na pele a sharia, a lei religiosa, recusam-se a falar no assunto e não deram às filhas qualquer contexto sobre o islamismo. Portanto, Sulle e também a amiga Kerima, que é ainda mais cabeça de vento do que ela, caíram fácil no papo manso do recrutador extremista – cujo disfarce profissional, e cuja fachada de pessoa moderninha e bacana, permitem que há muito tempo ele venha agindo entre jovens como Sulle e Pervin sem ser detectado.

    Califado
    (Netflix/Divulgação)

    O termo técnico para o que está acontecendo com Sulle e Kerima é “radicalização”, mas Califado, uma série sueca eletrizante que estreou há pouco na Netflix, mostra como a palavra é inadequada. “Radicalizar” pressupõe partir de uma base normal para um extremo. Mas a questão é que essas duas adolescentes não têm uma base da qual partir, e foi possível convertê-las da total alienção para o islamismo mais fervoroso quase que do dia para a noite. Ignorância, sensação de injustiça e, mais ainda, aquele surto de auto-estima que vem da ideia que se descobriu uma “verdade” que “forças misteriosas” conspiram para ocultar, e que agora se faz parte então de um grupo seleto de pessoas às quais essa verdade foi revelada: um organismo debilitado por essas fragilidades imunológicas se torna particularmente vulnerável ao contágio do fanatismo. E, apesar da conversa cheia de reforço positivo, não é gente “especial” que agentes patogênicos como o suave recrutador do EI procuram – são organismos frágeis como o de Pervin, Sulle, Kerima e de dois outros rapazes suecos que nada têm de árabe, mas também foram facilmente convertidos porque são pobres, mal-amados em casa, pouco instruídos e desesperados para encontrar algo que os salve da sua falta de horizonte. A tática é explorar a desesperança, o desamparo, as desvantagens e também aquela coisa tão bonita que é o entusiasmo da juventude. É de uma covardia sem tamanho, enfim.

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    Cena da série 'Califado'
    (Netflix/Divulgação)

    Califado arma uma rede complexa de personagens e de intrigas. O que este personagem tem a ver com aquele? Quem está fazendo jogo duplo? Qual o plano que está sendo posto em prática? Assisti a três episódios na primeira noite e a todos os outros cinco de uma vez só, no dia seguinte. Não dava para parar de ver, porque a trama é de uma tensão irresistível e porque, por coincidência, a série surgiu neste momento de pandemia, em que, além da ameaça silenciosa de um vírus extremamente comunicável, é preciso enfrentar ainda as facções que se valem de desinformar, enganar e tumultuar para garantir adeptos, com absoluto descaso pelo destino deles. Em algum momento, porém, haverá uma vacina contra o coronavírus, ou um tratamento eficaz. Contra o fanatismo e a irracionalidade, as chances são bem mais incertas.

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