Eu já disse outras vezes, e provavelmente ainda direi outras mais: para mim, Joaquin Phoenix é o cara – o ator que tem o “processo” mais misterioso do cinema americano, e frequentemente também o mais hipnótico, intrigante, instigante e imprevisível. Por isso mal posso esperar para ver o que ele vai fazer do Coringa no filme que estreia em 3 de outubro deste ano. Até em filme de superação – um gênero que em geral chove no molhado e costuma enaltecer doenças e infortúnios como método de aprimoramento do caráter – ele é capaz de dar um nó no espectador. Não que A Pé Ele Não Vai Longe, que está nos cinemas, seja o típico filme de superação; que eu me lembre, ao menos, não vi nenhum outro exemplar tão livre de julgamentos, sentenças e moralismos quanto este trabalho do diretor Gus Van Sant. Curiosidade: foi Van Sant quem dirigiu Phoenix em Um Sonho Sem Limites, de 1995, o primeiro filme que ele fez depois de mudar de nome, do ripongo Leaf (“folha”, em inglês) para Joaquin. Phoenix então tinha 21 anos, contracenou com Nicole Kidman e, dando o tom que segue até hoje, arrasou.
Leia a seguir a resenha completa:
Movimento Perpétuo
Em A Pé Ele Não Vai Longe, Joaquin Phoenix e o diretor Gus Van Sant formam a dupla ideal para entender os polos de autodestruição e vitalidade do cartunista John Callahan
Vagando pelas ruas com seu cabelo cor de laranja desgrenhado, a camisa havaiana amarrotada e os óculos enormes, John Callahan é a personificação do sujeito baratinado – e, enquanto narra a cena na qual se apresenta, avisa que este é o último dia em que vai andar sobre os próprios pés. Ainda intoxicado pela bebedeira da noite anterior, ele se apressa para comprar uma nova garrafa de tequila antes que a ressaca bata. Atravessa cruzamentos sem olhar, corre para lá e para cá arrastando os chinelos – então é agora?, pensa o espectador. Ele vai ser atropelado? Vai cair e fraturar a coluna no meio-fio? Não: Callahan ainda vai aprontar muito, e ficar incrivelmente mais bêbado do que já está, antes de afinal abusar demais da sorte e acordar tetraplégico no hospital – um rude despertar que ele enfrenta com plena noção da tragédia mas também com humor sardônico. Joaquin Phoenix, o ator mais imprevisível de sua geração (e de outras tantas gerações), é o intérprete ideal para esse personagem autodestrutivo e, paradoxalmente, cheio de vida. Da mesma forma, Gus Van Sant, que nunca se preocupou em encaixar seus filmes dentro deste ou daquele gênero, é o diretor perfeito para A Pé Ele Não Vai Longe.
Callahan tinha 21 anos em 1972, quando sofreu o acidente que roubaria a maior parte de seus movimentos. Viveu outros 38 em uma cadeira de rodas que pilotava como se estivesse em um circuito de corrida – e, ao longo desse período, descobriu-se um cartunista de talento e também de notável dom para a controvérsia: seus desenhos faziam chover cartas chocadas e ofendidas em redações como a do jornal Willamette Week, de Portland, Oregon, um dos mais assíduos na publicação de seus trabalhos. O título do filme – e do livro de memórias em que ele se baseia – é a legenda de um de seus cartuns mais cáusticos: A Pé Ele Não Vai Longe é o que um caubói a cavalo diz a outro ao encontrarem uma cadeira de rodas virada no meio do deserto.
Callahan detestava a piedade alheia e mão dava a mínima para as críticas à sua incorreção política. E, assim como ele soube escapar das armadilhas sentimentais e de vitimização do seu infortúnio, também Van Sant as dribla. As linhas de tempo se entrecruzam com uma inquietude que o espectador não tarda em identificar como o traço dominante de Callahan: a fase logo anterior ao acidente, as várias etapas da recuperação física e o atribulado período da tentativa de vencer o alcoolismo – com a ajuda do programa de doze passos e de um mentor interpretado com firmeza e doçura melancólica por Jonah Hill – acotovelam-se na narrativa, brigando para roubar lugar umas às outras. Se, de início, isso causa alguma confusão, no longo prazo o recurso se prova um acerto formidável: ao recusar a cronologia, o diretor de sucessos comerciais como Gênio Indomável e de experimentações fascinantes como Elefante garante que Callahan não termine definido pelo que aconteceu a ele, mas sim pelo que foi – o homem impaciente, engraçado, criativo, afetuoso e mordaz que Phoenix encarna sem engrandecimento, e com infinita curiosidade.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 02/01/2019 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2019 |
Trailer
A PÉ ELE NÃO VAI LONGE (Don’t Worry, He Won’t Get Far on Foot) Estados Unidos/França, 2018 Direção: Gus Van Sant Com Joaquin Phoenix, Jona Hill, Rooney Mara, Jack Black, Beth Ditto, Udo Kier Distribuição: Diamond |