As superproduções não chegaram aos cinemas. Os parques temáticos foram fechados. Os navios de cruzeiros não largaram dos portos. E ainda assim as ações da Disney subiram: uma mágica operada por um simples sinal de “+”. Um sucesso desde o lançamento, em novembro de 2019, a plataforma Disney+ virou gigante quatro anos antes do previsto. Propelido pela pandemia, pela estreia em novos territórios (no Brasil, está disponível há dois meses) e por lances ousados como a estreia de Mulan diretamente em streaming, o serviço alargou ainda mais a base conquistada por seu catálogo e por novidades como a ótima série The Mandalorian, que areja e renova o universo Star Wars. Chegou ao final de 2020 beirando a marca dos 90 milhões de assinantes. A Netflix, que se expandiu de 170 milhões para 195 milhões de inscritos, já registrou que tem uma rival colada aos seus calcanhares.
Outros serviços menores cresceram também, como o Hulu e NBCUniversal — e a lanterninha da turma, a plataforma HBO Max, deu a cartada mais ousada, controversa e inesperada de todas na tentativa de parar de patinar e afinal disparar: há um mês, a Warner anunciou que toda a sua planilha de 2021, abrangendo dezessete títulos ao custo de 2 bilhões de dólares, será lançada ao mesmo tempo nos cinemas e no streaming. Denis Villeneuve, de Duna, e todos os outros envolvidos nesses projetos souberam da novidade pela imprensa, em um lance de notável falta de tato — e respeito. Mas não é só por se sentirem traídos que manifestaram com muita dureza seu desalento: todos eles levantaram questões perturbadoras sobre o que isso pode significar para o cinema já em um futuro próximo.
Não há dúvida de que o streaming foi um bálsamo nesses longos meses de confinamento e que, entre filmes e séries, as diversas plataformas ofereceram uma grande quantidade de ótimas produções originais — muitas delas assinadas por gente do calibre de David Fincher (Mank), Aaron Sorkin (Os 7 de Chicago) e George Clooney, cujo trabalho mais recente como ator e diretor, O Céu da Meia-Noite, foi lançado na Netflix na véspera do Natal. Também não se discute que pode ser muito agradável e conveniente ter disponíveis em casa, no mesmo dia e data, filmes concebidos para a tela grande com todo o arrojo de que são capazes cineastas como Villeneuve.
Há outras certezas, ainda. Mesmo com a vacinação, não se prevê nenhum tipo de normalidade para o primeiro semestre de 2021, e talvez nem para o segundo; a imunização em duas doses de nações inteiras é uma tarefa hercúlea. Intui-se também que houve uma mudança de hábitos, mas só quando o chamado “novo normal” estiver em vigor é que será possível quantificá-la — e, nos países em que os cinemas estão ou estiveram abertos, a baixa frequência enseja projeções pessimistas. Diante de tudo isso, pode ser fácil concluir que a ascensão inexorável do streaming é indiscutivelmente benéfica.
Esse panorama, entretanto, deixa de contemplar um dado fundamental: a competição entre o cinema e o streaming não corre em mão única. É mútua e, em muitos sentidos, provou-se mutuamente benéfica — o cinema precisa de ambição e audácia para concorrer com o divertimento caseiro; e este tem de buscar qualidade e originalidade para disputar público com a tela grande. Sem o padrão e o poder de atração da produção cinematográfica, o streaming perde muito do incentivo que hoje leva as plataformas a seduzir cineastas de renome com orçamentos generosos e a garantia de liberdade. E, com a inércia propiciada pelo sistema de assinatura, ficam sob a tentação de derrubar a qualidade do conteúdo.
Não é em 2021 que os efeitos dessa tendência se farão sentir, já que quase a totalidade dos títulos pivotais de 2020 foi empurrada para este ano — em princípio, para exibição em circuito, mas sabe-se lá. A agenda inclui Duna, Matrix 4, Top Gun: Maverick, 007 — Sem Tempo para Morrer, Velozes & Furiosos 9, Viúva Negra, Missão: Impossível 7 e West Side Story. Mas é seguro que todos esses filmes teriam outra escala, mais modesta — ou nem teriam sido feitos —, se seu destino fosse sabidamente o streaming. Se os outros estúdios seguirem a tática da Warner (ou na verdade da AT&T, que hoje controla todos os ramos do grupo Warner), o cinema vai ficar muito menor do que o era antes da Covid-19 — e, junto com ele, também o streaming vai se apequenar na banalidade e mediocridade. Mais que concorrentes, eles são hoje organismos simbióticos; precisam um do outro para prosperar.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720