Invasão Zumbi
Onde: Netflix, NOW
Ainda que o título pareça autoexplicativo e a ação seja ininterrupta (além de eximiamente concebida), os mortos-vivos não são o centro do filme do diretor Sang-ho Yeon: desde o momento em que a epidemia de zumbis eclode até a última cena, o que está em questão são as exceções que os personagens abrem (ou não) para si mesmos na premência de escapar da fome bestial dos metamorfoseados. Yeon vai além: se sobreviver exige acovardar-se, proteger-se na indiferença ou mesmo abandonar os semelhantes, então o sobrevivente não poderá se acreditar muito mais humano que os zumbis. Esse é o teste a que é submetido o jovem financista Seok (Yoo Gong). Ainda no carro, rumo à estação ferroviária, ele e a filha pequena, Soo-an (Soo-an Kim), percebem uma certa agitação em Seul. Mas só dentro do trem, no trajeto até a cidade de Busan, eles se darão conta da calamidade: um após o outro, passageiros e tripulantes vão se transformando e instaurando o pânico nos vagões. Seok é um pai distante; trabalha muito, convive pouco e está levando Soo-an para Busan apenas para largá-la na casa da ex-mulher. O desespero faz o amor paterno aflorar com violência. Mas a menina não quer ser salva a qualquer custo: quer que o pai ajude outros além dela, porque precisa que ele prove ser o homem que ela imagina. A aflição não dá trégua, o arrependimento é constante. E o horror, esse está não só nos mortos-vivos repugnantes, mas sobretudo na facilidade com que o medo transforma gente em bicho.
Os Curados
Onde: Looke, Prime Video, NOW
Encontrou-se um antídoto para a epidemia de mortos-vivos que flagelou o mundo, e agora os ex-zumbis têm não apenas de conviver com as lembranças do que fizeram nos anos em que estiveram transformados, como precisam também enfrentar a desconfiança e a hostilidade dos que não foram afetados – os quais, compreensivelmente, perguntam-se se a cura é definitiva e completa, ou se os instintos deflagrados pelo vírus persistem, adormecidos, nos curados. Assim, enquanto três quartos da população vivem sob a lei policial imposta pelo outro quarto, as insatisfações e rancores vão se acirrando até o insuportável. Com muito horror e sangue, mas com doses ainda mais fortes de comentário social, este filme irlandês fala de maneira muito direta das tensões latentes que, teme-se, podem propiciar um ressurgimento do terrorismo do IRA da Irlanda do Norte. Mas aplica-se que é uma beleza também a tantas outras situações do presente: a rejeição a imigrantes, os atritos alimentados pelos desníveis sociais, a virulência da direita neofascista – todos, aliás, quadros que a atual pandemia já está potencializando.
Madrugada dos Mortos
Onde: Netflix, Looke
Antes de Zack Snyder fazer 300 e então assumir as rédeas do universo DC, ele se graduou da publicidade e dos videoclipes para o cinema com esta refeitura do clássico de 1978 de George A. Romero (que é uma continuação, aliás, do A Noite dos Mortos-Vivos de 1968). Mais calcado na ação e menos intenso no comentário social que o original de Romero, é satisfação garantida para quem gosta do apocalipse zumbi servido com doses generosas de sangue, nojeira e violência explícita – mas entrega o que promete, é muito hábil nas marcações do ritmo, e o bom elenco é um bônus. Sarah Polley, Ving Rhames, Mekhi Phifer, Ty Burrell e Jake Weber são alguns dos sobreviventes da epidemia que se alastra quase que instantaneamente por Milwaukee, Wisconsin, no Meio-Oeste americano, produzindo zumbis rápidos e ágeis, ainda que não necessariamente espertos (bater a cabeça continuamente em portas de vidro é um dos passatempos favoritos deles). Refugiado em um shopping center, condenado a ouvir muzak nos alto-falantes e tendo de conter o entusiasmo de um segurança bronco (Michael Kelly), o grupo precisa se entender consigo mesmo e bolar uma estratégia de fuga.
Presságio
Onde: Prime Video
Durante uma aula na escola primária, em 1959, os alunos são convidados a desenhar suas visões do futuro e então guardá-las numa “cápsula do tempo”, a ser reaberta cinquenta anos depois. Uma das meninas, em vez de desenhar robôs ou carros voadores, cobre uma folha de papel, frente e verso, com números aleatórios. Em 2009, quando o papel cai nas mãos do astrofísico John Koestler (Nicolas Cage), ele por acaso repara num trecho que não poderia deixar de intrigá-lo – 91101, ou 11 de setembro de 2001. O grupo seguinte de numerais também faz sentido: é 2996, o número de vítimas dos atentados daquele dia. A partir daí, Presságio embarca na febre do protagonista de descobrir que eventos estão expressos na sequência. São desastres aéreos, terremotos e atentados– e quase todos ocorreram nas décadas em que a profecia esteve sob a terra, exceto pelos três últimos, “marcados” para os próximos dias. Ora, que utilidade poderia ter uma previsão do passado? Presságio, que é menos bobo do que parece, sabe que, como está bem estabelecido por exemplo na interpretação dos Evangelhos, a função de um milagre não é chamar atenção para si: ele serve para revelar o divino e instigar a crença nele, de forma a que se atente para as coisas que serão ditas ou mostradas a seguir. À parte um entrecho tolo, que muito prejudica sua meia hora final, a trama é conduzida com pulso firme e encenação imaginativa pelo diretor Alex Proyas, de Eu, Robô.
Eu Sou a Lenda
Onde: Netflix, Looke, NOW
Will Smith é Robert Neville, um cientista que, até onde ele próprio sabe, é o único ser humano a ter sobrevivido inalterado a uma epidemia deflagrada por um vírus modificado. Os que não eram imunes, como ele, morreram em decorrência da infecção – ou foram mortos, de maneira selvagem, pelos homens e mulheres que, contaminados, se metamorfosearam em criaturas assemelhadas a vampiros. Como os vampiros, esses mutantes reagem até ao mais sutil cheiro de sangue. E, como eles também, não toleram a luz solar. Durante o dia, portanto, Neville circula em companhia de Sam, a inseparável fêmea de pastor alemão que o protege, por uma Nova York deserta, destruída e que está rapidamente sendo devolvida à natureza. Antes que a noite comece a cair, ele se recolhe à casa que transformou numa espécie de fortaleza e da qual nenhum sinal de existência humana pode escapar. À parte alguns flashbacks, Smith está absolutamente só em cena durante mais de uma hora – até Alice Braga entrar na história, já muito perto do desfecho. Eu Sou a Lenda recupera o enredo de A Última Esperança da Terra, uma ficção clássica de 1971 com Charlton Heston, mas toma muito mais ainda emprestado de Extermínio, o sucesso-surpresa lançado por Danny Boyle em 2002. Como no filme do diretor inglês, a manipulação biológica é o gatilho para um novo holocausto, e as criaturas que surgem da contaminação ainda são seres humanos – mas seres humanos em que os traços mais violentos e agressivos enterraram todos os outros comportamentos. E a cidade deserta é, da mesma forma, um personagem crucial. Faz pensar em algo? Pois é.
Ao Cair da Noite
Onde: Netflix, NOW
Qual é a natureza do mal que recaiu sobre o mundo? Paul (Joel Edgerton, que assina também como produtor executivo), sua mulher e seu filho não sabem dizer, e não têm a quem perguntar. Nem querem ter: qualquer um ou qualquer coisa lá fora pode trazer para dentro de casa a peste. O sogro de Paul acaba de chegar aos últimos estágios dela; enrolados em plásticos, e usando máscaras e luvas de borracha, Paul, Sarah e Travis despedem-se dele, antes de levá-lo para uma cova na mata, matá-lo com um tiro de misericórdia e então queimar o corpo. Naquela noite, ninguém tem vontade de comer, embora a comida já esteja acabando. E, além do luto e da escassez, há o medo. Todas as portas e janelas da casa já foram tapadas com tábuas bem pregadas, e qualquer latido do cachorro deixa a família em pânico. Uma noite, o cão late, e ouve-se um barulho dentro da casa: alguém mais chegou. Misto de terror e suspense passado num mundo pós-apocalíptico no qual nunca se veem as marcas deixadas pelo apocalipse, Ao Cair da Noite é para quem gosta daquilo que se chama de slow burn – a tensão levada em fervura baixa, esticando os nervos (mas esticando-os bastante) mais do que testando-os com sustos e ação. É quieto, em certos trechos até lento, e deixa muita coisa no ar. Mas o diretor quase-novato Trey Edward Shults, um talento de primeira, se sai com um exemplar excelente de uma corrente que vem ganhando força, a dos filmes pós-apocalípticos que fecham o foco em um sobrevivente, ou no máximo em um pequeno punhado deles. Com o mundo quase inteiro em quarentena, é de apavorar.
Um Lugar Silencioso
Onde: Telecine
Os poucos seres humanos que restam sobre a Terra têm de viver em silêncio absoluto; qualquer ruído atrai as criaturas vorazes que praticamente extinguiram a humanidade. No caso de Lee (John Krasinski, que também dirige) e de sua mulher, Evelyn (Emily Blunt, casada com Krasinski na vida civil), essa compenetração é tanto mais difícil porque eles têm filhos pequenos, a quem é difícil controlar. Em outro aspecto, eles se adequaram mais facilmente às exigências desse novo mundo porque sua filha mais velha, Regan, é surda, e a linguagem de sinais já faz parte da vida deles (Millicent Simmonds, a atriz fabulosa que faz Regan, é de fato deficiente auditiva). Com orçamento modestíssimo para os padrões americanos – 17 milhões de dólares –, Krasinski demonstra talento visual surpreendente e usa a imaginação para racionalizar a rotina desse pós-apocalipse passado em uma casa de fazenda cercada de um milharal. Até a trilha do ótimo Marco Beltrami sussurra, apenas, na maior parte do tempo. É poderoso o efeito dessa recriação de uma vida em silêncio completo: imagine não só não ouvir mais o som da sua própria voz e a das pessoas próximas, mas não poder dar um suspiro de cansaço, exclamar de susto, dar uma risada espontânea. Imagine, também, como seria ter de lidar com o mundo físico como se ele fosse um inimigo, pensando antes de dar um passo, manusear um objeto ou despejar água em um copo. Mas, ops, é exatamente isso que estamos vivendo agora, o que redobra a ressonância do filme – cuja continuação, que deveria estrear em 19 de março, foi adiada para data indefinida em razão da covid-19.
O Último Suspiro
Onde: Looke, Telecine, NOW
Uma bruma espessa e amarelada, vinda sabe-se lá de onde, começa a tomar as ruas de Paris, até se depositar como um colchão, imóvel, até a altura dos quartos andares. Quem foi exposto a ela, morreu. Quem conseguiu subir até as clássicas mansardas dos quintos e sextos andares dos prédios parasienses ainda sobrevive. Muitos conseguiram correr para o ponto mais alto da cidade, a colina de Montmartre – mas logo esses morrerão na selvageria que se instala com a falta de água e de alimento, e que este filme muito curioso do diretor Daniel Roby mostra apenas de longe, pelos binóculos de Mathieu (Romain Duris), o pai que junto com a mulher, Anna (Olga Kurylenko), precisa se manter vivo a qualquer custo. Disso depende a sobrevivência da filha do casal, que sofre de uma síndrome imunológica grave e está cercada da fumaça letal em sua bolha de vidro e plástico. Os filtros da bolha são alimentados por baterias; em algum momento, as baterias vão acabar, o que obriga Mathieu a sair às ruas, ao mesmo tempo em que a bruma começa a subir va-ga-ro-sa-men-te. Como no também francês A Noite Devorou o Mundo, sobre o qual você pode ler no texto logo abaixo, esse estranho apocalipse é levado na base da tensão discreta porém crescente, como um torniquete que se vai apertando aos poucos.
A Noite Devorou o Mundo
Onde: Telecine, NOW
Sam (Anders Danielsen Lie) apareceu na casa da ex só para pegar uma caixa com seus pertences, mas encontrou uma festa rolando e, chateado, trancou-se em um dos quartos e adormeceu. Barulhos estranhos o despertam: quando ele sai, o apartamento está um caos. Está também vazio – e com as paredes e o chão lavados em sangue. O inimaginável aconteceu: o apocalipse zumbi chegou a Paris. Mas este não é propriamente um filme de terror; é sobre o mais aterrorizante dos destinos – a solidão. Quando entende o que se passou, Sam fica mais ansioso do que amedrontado; em uma cultura pop hoje tão obcecada com a ideia de um apocalipse, a concretização dele não chegaria a ser uma surpresa. É quase um alívio: agora aconteceu, e pronto. Metódico, Sam sela todas as entradas, isola os apartamentos que contêm mortos-vivos, recolhe comida e utilidades, inventaria o que tem à mão, limpa a casa. Ouve música, toca instrumentos, exercita-se nos corredores. Faz amizade, digamos assim, com um zumbi preso atrás de uma grade: pouco a pouco, a solidão terrível vai se insinuando nessa rotina, até levar a desenvolvimentos inesperados. A cena final parece deixar as coisas em aberto. Mas pense bem nela; é um lance de mestre. Embora A Noite Devorou o Mundo seja o mais atípico dos filmes de apocalipse zumbi, ele de certa forma vai direto ao coração do tema. Que cara teria a vida em uma eventualidade como essa? Provavelmente, a mesma cara da vida que, nestes últimos anos, fez os mortos voltarem à vida com força total no cinema e nas séries – esse sentimento de desconexão, de isolamento, de indiferença e de segregação que torna a ideia tão presente.
Guerra Mundial Z
Onde: NOW
Brad Pitt é Gerry Lane, ex-analista de campo da ONU que resolveu virar simples pai de família em Filadélfia. Parados no trânsito, a caminho da escola, Gerry, sua mulher (Mireille Enos) e as duas filhas pequenas mal têm tempo de registrar os sinais – uma correria, um pânico súbito – de algo anormal: em segundos, pessoas de olhos esgazeados estão arrancando os passageiros de dentro dos carros, lançando-se de cabeça contra os para-brisas para arrebentá-los, mordendo aqueles que conseguem agarrar e transformando-os também, instantaneamente, em criaturas de agressividade incontrolável. Da fuga de Filadélfia para o abrigo em navios, e destes para a Coreia do Sul e Jerusalém – esta, uma sequência espetacular –, Guerra Mundial Z combina o terror puro e simples (e a maneira animalesca como os zumbis se movem, cooperando como uma colônia de insetos) com pinceladas de reflexão geopolítica. De quebra, surpreende com uma inversão: em vez de fazer a ação escalar até o bombástico, encerra-a com uma sequência quase silenciosa, num ambiente fechado e vazio, no qual meia dúzia de personagens tenta passar despercebida de um punhado de zumbis. Um dia, quem sabe, este misto tenso – e muitas vezes arrepiante – de terror e thriller há de ficar melhor ainda: apesar dos sucessivos adiamentos, não está eliminida a hipótese de que ele finalmente ganhe a continuação tão prometida.
Todo Mundo Quase Morto
Onde: Netflix
Shaun (Simon Pegg, impagável) sai para comprar uma Coca-Cola e depara com as cenas de sempre: um carro com o pára-brisa quebrado, lixo espalhado pela calçada, gente caminhando trôpega pelo meio da rua. Enfim: uma típica manhã de domingo (em outras palavras, pós-bebedeira de sábado) em Londres. Como, então, Shaun poderia ter notado que a civilização acabou e os zumbis tomaram a cidade? Não poderia, claro. Todo Mundo Quase Morto pode parecer uma escolha estranha para esta lista, mas oferece uma hora e meia de descontração e é um desses momentos de genialidade do cinema inglês: uma comédia que satiriza, com amor, não só os filmes de zumbis – especificamente o ultraclássico O Despertar dos Mortos, de Goerge Romero –, mas a própria Inglaterra. Shaun e seus amigos, por exemplo, pensam, pensam e pensam numa alternativa de refúgio. E, claro, só conseguem ter uma ideia (a de sempre): o pub (no original americano, corria todo mundo para o shopping). A meio caminho, cruzam com outros sobreviventes. Todos ensanguentados, e carregando pás e tacos de críquete cobertos de fragmentos de zumbis, eles iniciam as apresentações: “Yvonne, como vai? Esta é minha mãe. E acho que você já conhece a minha namorada”. Seria surreal, se não fosse tão fiel à filosofia britânica de que desgraças devem ser aceitas graciosamente, e com o ar mais distraído possível. É paródia no seu mais engraçado e debochado – e mais cheio de vida.