Não sei como andará o seu local de trabalho, amigo leitor – mas aqui, na redação de VEJA, a parede que divide os banheiros feminino e masculino continua firme, no lugar de sempre. Fiquei surpreso: passados já três dias da palestra de Judith Butler em São Paulo, a administração predial ainda não providenciou uma equipe de operários para pôr abaixo essa imposição da sociedade cis-heteronormativa! Pela reação histriônica de certos grupos contra a presença da “teórica queer” no Brasil – chegaram até a queimar a filósofa (só em efígie, para decepção dos manifestantes) -, imaginei até que poderíamos dispensar as marretas: a voz da filósofa-bruxa por si só já faria ruir todas as paredes e instituições do patriarcado opressor. Eu já estava até me conformando às mudanças que a mera presença da feiticeira acadêmica no país traria ao meu cotidiano. Se Judith Butler houvesse mesmo abolido o gênero no Brasil, eu me adaptaria, de um jeito ou outro (se ela abolisse o sexo, aí, sim, eu mesmo botaria fogo no boneco com a cara da filósofa).
Judith Butler, veja só, parece acreditar que outro filósofo, Marc Jongen, tem poderes demiúrgicos: uma fala relativamente breve desse ideólogo da nova direita alemã em um simpósio no Centro Hannah Arendt, do Bard College, nos Estados Unidos, teria o poder de instaurar o fascismo sobre a Terra. Ou, se não chegasse a tanto, conseguiria “vilanizar grupos já vulneráveis” (no caso, os imigrantes, e em particular os imigrantes islâmicos cuja entrada na Alemanha Angela Merkel facilitou). O nome da filósofa queer estava entre os mais de 50 signatários de uma carta aberta que protestava contra a presença de Jongen no evento. Certo, estou aproximando caricaturalmente duas manifestações de categorias bem diferentes. A carta aberta não chega a ser tão boçal quanto o abaixo-assinado que pedia o cancelamento da participação de Judith Butler “num simpósio comunista, pago com o dinheiro de uma fundação internacional”. Mas o texto está imerso na velha santimônia progressista, que por princípio considera muito legal e democrático ouvir todos os pontos de vista – desde que sejam pontos de vista progressistas.
A carta faz uma concessão às razões do diretor do centro Hannah Arendt, Roger Berkowitz, para convidar Jongen: admite que é preciso considerar um “amplo escopo de visões políticas, inclusive as não-liberais e até as neofascistas” – desde que não se vilifiquem os tais grupos vulneráveis! Ou seja, vale ouvir “neofascistas”, desde que eles não expressem ideias neofascistas. E quem define o que constitui fascismo, o que é vilificação e quem conta como vulnerável? Os signatários da carta apresentam-se como candidatos a régua e compasso do debate público aceitável.
Marc Jongen, o “neofascista” em questão, é filósofo e ideólogo do Alternative für Deutschland (AfD), partido de direita que teve 13% dos votos na última eleição alemã. Uma das cadeiras recém-conquistadas pelo AfD no parlamento pertence ao próprio Jongen. No simpósio do Centro Hannah Arendt, ele se definiu como uma criatura “anfíbia”, que vive ao mesmo tempo no mundo acadêmico e no mundo político. Sua fala foi suave, clara, sem os arroubos que se esperam de um populista (qualificação que ele, ao longo da palestra, abraçou, ainda que com reticência) e sem chamados à ação violenta. O jornalista e historiador Ian Buruma, designado para debater com Jongen no simpósio, argumentaria depois, em um artigo, que o filósofo representa o novo modelo da extrema direita europeia; na substância, as ideias seriam as mesmas, mas o estilo ficou bem mais palatável: no lugar da camisa preta, o terno bem-cortado; no lugar da diatribe raivosa, o discurso ponderado. Buruma, no entanto, defendeu a presença de Jongen no simpósio. Muito razoavelmente, argumentou que o representante de um partido de oposição que tem existência legal em uma nação democrática não está fora de lugar em um evento universitário – e lembrou que revolucionários da esquerda sempre foram muto bem recebidos no campus americano. No jornal The Guardian, a escritora Francine Prose, que leciona no Bard College, também apoiou a decisão do Centro Hannah Arendt – e disse que, para seus alunos, ouvir ao vivo a palavra de um extremista representou um verdadeiro aprendizado. No lado oposto do debate, Masha Gessen, colunista da revista The New Yorker e também participante do simpósio do Centro Hannah Arendt, fez coro à carta aberta que criticava a presença de Jongen no Bard College.
A discussão sobre a propriedade ou impropriedade da presença de um pensador da extrema direita no Centro Hannah Arendt por vezes derivou para especulações sobre o que a própria Hannah Arendt pensaria a respeito. A autora de Origens do Totalitarismo aceitaria o pensamento de um filósofo criptofascista na universidade? (Não resisto à provocação vulgar: sim, claro que aceitaria – desde que esse filósofo fosse Martin Heidegger.) Até onde vi, ninguém questionou as credenciais acadêmicas de Jongen (que são provavelmente mais sólidas que as de outros convidados, inclusive Masha Gessen). No limite, o único argumento mais ou menos razoável contra Marc Jongen diz respeito à suposta “legitimação” que um centro universitário concederia a seus convidados. Não se deve dar prestígio a uma figura como Marc Jongen, alegam os críticos. As urnas alemãs, claro, já lhe deram prestígio eleitoral, mas o prestígio acadêmico, diz Masha Gessen, é de outra natureza e tem outro alcance.
Entretanto, na escala das missões fundamentais de uma universidade, a atribuição de prestígio vai bem lá no fundo, não? Bem lá cima, deveria estar a discussão livre de ideias. Todas as ideias.
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Quase sempre que escrevo sobre temas que tangenciam a liberdade de expressão, aparece alguma mente simplória para dizer que estou negando o direito ao protesto. Então as pessoas que não concordam com a “ideologia de gênero” não podem fazer abaixo-assinados e manifestações contra a palestra de Judith Butler? Por acaso os cineastas pernambucanos não podem retirar seus filmes de um festival em protesto contra a exibição do documentário sobre Olavo de Carvalho? Sim, podem. É direito deles, incontestavelmente. E é eu meu direito acusar a natureza autoritária e o desejo de censura que estão embutidos nesses protestos. Simples, não?
Liberdade de expressão inclui até o direito de protestar contra a própria liberdade de expressão. Dentro de certos limites. Que limites são esses? Dou dois exemplos.
1- Abaixo-assinado contra palestra de Judith Butler? Está valendo. Também está valendo protesto na entrada do lugar onde se dará a palestra. O que não se admite é assédio e agressão contra a filósofa e sua mulher no aeroporto, como infelizmente ocorreu quando as duas embarcavam de volta para os Estados Unidos.
2 – Retirar caprichosamente seu filme de um festival porque a programação inclui um documentário do qual você discorda é seu direito. Não é seu direito impedir a exibição do filme com força bruta e gritaria, como mais recentemente fizeram militantes de esquerda na Universidade Federal de Pernambuco.
Nunca é demais esclarecer o que já deveria estar bem claro.