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A doce censura do movimento negro

Liberdade artística em baixa: Fabiana Cozza desistiu de um papel por pressão de ativistas e a Bienal do Mercosul buscou o nihil obstat dos militantes

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 15 jun 2018, 18h20 - Publicado em 15 jun 2018, 18h07

A caminho do trabalho, ouço, no rádio do carro, um debate a respeito do episódio envolvendo a cantora Fabiana Cozza e o musical sobre dona Ivone Lara. A conversa versou sobre colorismo, pigmentocracia, branquitude. Perdidos no esforço de explicar aos ouvintes essas novas e vibrantes categorias do léxico identitário, os participantes quase não falaram, ao longo dos primeiros dez minutos de programa (não ouvi até o fim), do caso que motivara o debate. O fato fundamental seria talvez incômodo para os falantes de um jargão bizantino que guarda cada vez menos relação com a realidade que julga descrever e que pretende mudar: por pressão da militância negra, uma artista afrodescendente foi constrangida a desistir de um trabalho. Aos olhos vigilantes da rede social colorista, Fabiana Cozza, filha de mãe branca e pai negro, era demasiado clara para encarnar, no teatro, Ivone Lara — ainda que a família da grande sambista a tenha apontado como a artista ideal para o papel. Foi um triste caso de discriminação — no sentido estrito da palavra –baseada na cor da pele.

Discriminação é uma palavra feia, que se soa ainda mais feia quando se pode associá-la com tanta facilidade aos que pretendem combatê-la. Outra palavra feia: censura. É um tema recorrente deste blog, pois a besta censória é incansável, e feroz, e insidiosa: aparece na política e nas artes, à esquerda e à direita, sempre disfarçada das mais nobres intenções — do combate à pedofilia à promoção da igualdade racial.

Estou chegando tarde à discussão do episódio. Caetano Vilela, na VEJA da semana passada (edição 2586), praticamente encerra o assunto em um artigo indignado e incisivo, cuja leitura recomendo (link abaixo, para assinantes). Só escrevo porque quero insistir na palavra, que aparece duas vezes no artigo de Vilela: censura. Grupos organizados e militantes de rede social decidem, antes mesmo do início da produção de um espetáculo, vetar determinado artista: para meu critério, esse esforço concentrado para que uma cantora não possa cantar constitui, sim, censura. Em seu belo artigo, Vilela lista outras peças canceladas por pressão de movimentos negros. Quero aqui tratar de um caso que ele não citou, e que é emblemático por duas circunstâncias: deu-se em Porto Alegre, e envolveu uma grande mostra de arte  — tal como aconteceu com o Queermuseu, episódio extensamente comentado e condenado na imprensa (e também aqui neste blog). Ao contrário do que se viu na mostra do Santander Cultural, nesse novo episódio não houve cancelamento da exposição. Mas uma porta foi aberta para os censores — e com um agravante sério: os censores foram chamados por quem deveria zelar pela liberdade artística.

 

***

Frei Bartolomeu Ferreira era um doce.

Em 1572, a serviço da “santa & geral inquisição”, o bom frade autorizou a publicação de Os Lusíadas. Nos dez cantos compostos por Luís de Camões não havia “coisa alguma escandalosa, ou contrária à fé & bons costumes”, anotou o religioso. Ferreira mostrava certo desconforto com as referências a deuses pagãos, mas entendeu que era tudo artifício literário, “poesia & fingimento”, ficando a salvo “a verdade de nossa santa fé, que os deuses dos gentios são demônios”. As Tágides estavam assim liberadas para inspirar o “novo engenho ardente” do bardo lusitano. Mais doce que ambrosia, esse inquisidor.

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Também doce era a escritora sul-africana Anna Bassel. Em uma palestra que deu no Brasil, em 2013 — publicada pela editora da Universidade de Santa Maria, em tradução de Lawrence Flores Pereira, com o título Sobre a Censura –, seu colega e compatriota J.M. Coetzee conta que certo dia Anna o convidou para um chá na casa dela, e os dois tiveram uma animada conversa sobre a literatura sul-africana. Eram ainda os tempos do apartheid, e o regime controlava a circulação de livros potencialmente contrários a seu ideário racista. Foi só anos depois do fim do apartheid, quando um pesquisador lhe passou relatórios de censores a respeito de suas obras, que Coetzee descobriria a verdade sobre a gentil senhora que o recebeu para uma xícara de chá: Anna esteve entre os vários leitores empregados pelo governo para fiscalizar seus livros. Ela leu No Coração do País (1977), segundo romance do futuro Nobel de Literatura, e o considerou “uma obra de estatura”. Tal como o Frei Bartolomeu Ferreira, que quatro séculos antes tinha suas desconfianças com os deuses pagãos mas afinal considerou que Os Lusíadas não ofenderia a cristandade, Anna Bassel apresentou restrições suaves a duas passagens — uma cena de estupro, e outra que se passa em um banheiro –, mas afinal recomendou a publicação do romance. Um docinho de coco, a senhora Bassel!

Espero que seja razoavelmente claro que os dois casos descritos acima são situações de censura. O padre ou escritora que lê uma obra literária antes de sua publicação e conclui que não se faz necessário proibi-la continua sendo um censor. Ele ou ela conserva a prerrogativa de agir de outro modo, ordenando a proibição do livro ou condicionando sua publicação a cortes no texto. Parece ter se dado algo semelhante na 11a Bienal do Mercosul, que se encerrou no mês passado. Reportagem de Júlia Corrêa no Estado de S. Paulo revela que, antes da abertura da mostra, em abril, lideranças negras de Porto Alegre foram convidadas a visitar a sala do Margs em que seriam expostas esculturas em argila do português Vasco Araújo — peças que retratavam a violência contra escravos. Gilberto Schwartsmann, presidente da Fundação Bienal, disse que a “liberdade curatorial” estava preservada, que não se cogitava retirar obras da bienal. Qual seria então a função dos fiscais raciais? Schwartsmann não deixa isso claro, mas observa — é a última frase da reportagem — que nenhum de seus convidados tão especiais se sentiu “ofendido” com a obra. Respiramos aliviados! A militância, na generosa tradição de censores esclarecidos como Frei Bartolomeu Ferreira e Anna Bassel, conferiu o seu  nihil obstat à bienal.

O leitor entenderá agora porque afirmei acima que os censores de Camões e Coetzee eram pessoas doces. Inspirei-me na frase tão pitoresca com que Gilberto Schwartsmann justificou-se: “Foi doçura, não foi censura”. 

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Imagine o leitor se, no lugar das tais lideranças negras, a Bienal do Mercosul houvesse convidado bispos católicos e pastores evangélicos para ver antecipadamente alguma obra potencialmente “ofensiva” ao cristianismo. Ah, não tenho dúvida de que a grita seria imensa (até porque eu mesmo estaria entre os gritões). Firmou-se, no entanto, um consenso tácito de que certos movimentos sociais — sobretudo os que dizem representar vítimas históricas de preconceito e discriminação –contam com autoridade moral para dizer o que é ou não aceitável em arte. É doçura, não censura!

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(Distinção importante: seria perfeitamente legítimo que esses grupos criticassem as obras que julgam – vá lá o adjetivo tão capcioso – ofensivas. Mas em geral o que eles buscam é outra coisa: não a discussão de uma ideia, peça de teatro, obra de arte, mas a sua supressão. Fabiana Cozza não pode interpretar Ivone Lara. A companhia teatral Os Fofos Encenam não pode mais montar a peça A Mulher do Trem, na qual se usa blackface. Doce censura.)

Que ganhos efetivos esse limitado poder de arbítrio sobre manifestações artísticas traz às minorias? Nada que de fato confronte os problemas concretos e prementes da discriminação racial, ou da desigualdade social entre brancos e negros. É uma luta no terreno “simbólico”, com vitórias para a “representatividade”. Como bem definiu Caetano Vilela, tudo se resume a um “ativismo de classe média”, a “uma luta de nicho, segregada e autofágica”.

***

Frei Bartolomeu Ferreira era agente da Inquisição. Anna Bassel, do apartheid. Exerciam a censura institucional, ele amparado pela igreja; ela, pelo Estado. No Brasil, o monstro da censura oficialmente chancelada está mais manso, mas ainda dá suas mordidas.  Volta e meia, aparecem lamentáveis casos de censura judiciária, como a proibição, em Judiaí, no ano passado, da apresentação de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, monólogo no qual a transexual Renata Carvalho vive Jesus. Mais recentemente, a mesma peça foi vetada em um teatro municipal do Rio. O inacreditável prefeito Marcelo Crivella disse que não permitiria espetáculos que “ofendam” a religião.

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O fenômeno de que trato aqui, porém, é de outra natureza: uma nova modalidade de censura que se exerce sem a mão pesada do Estado, só pela força do grito, da pressão massiva e às vezes anônima dos militantes – que, sejam de direita ou de esquerda, identitários ou contra-identitários, agem sempre com intolerância e santimônia. Esse fenômeno foi muito bem analisado por Rodrigo de Lemos, em um artigo publicado no ano passado em VEJA – cujo motivador era o encerramento, sob pressão, do Queermuseu. Lemos fala de uma  “terrível nova voz, coletiva e anônima, autoritária e caótica, imperativa e manipulável, que representa, hoje, o maior perigo às liberdades individuais”. É essa voz que não deixa Fabiana Cozza cantar.

 

 

***

Há tempos, critiquei  Mallu Magalhães quando a cantora pediu desculpas por um videoclipe que desagradou a militância negra. Dizia então que essa capitulação comprometia a liberdade não só de Mallu, mas de outros artistas. Pedir desculpas é ceder terreno à pressão, à censura. Nos mesmos termos, lamento que Fabiana Cozza tenha desistido de interpretar Ivone Lara. E tanto mais lamentável foi a atitude da Bienal do Mercosul ao pedir a aprovação prévia dos militantes.

O artista que não faz concessões já foi um herói cultural (ou, nos anos 60, contracultural). Restam ainda alguns deles por aí. Em entrevista à colega Raquel Carneiro, no último Festival de Cannes, Lars Von Trier colocou as coisas em termos muito serenos: “Meu objetivo é sempre ir o mais longe possível. Pois seria desonesto e covarde não fazer isso. O espectador é quem decide se fecha os olhos, se fica na sala, se encara a cena”. Ou seja, a liberdade do artista pressupõe a liberdade do público — um pacto que os censores de rede social não entendem, ou não aceitam. 

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(Falo de criadores que não fazem concessões e subitamente lembro que este blog ainda não falou da morte de Philip Roth. Uma falta a reparar.)  

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