Um novo jeito de caminhar
Lula se tornou uma peça-chave em todo esse teatro das eleições da Venezuela
“Nossa revolução é armada”, disse Maduro, em um de seus infinitos pronunciamentos. Ele fala como se estivesse em um programa de TV, e há sempre uma pequena plateia de militares e funcionários aplaudindo. Naquele dia, o sentido de suas palavras era claro: o que existe na Venezuela é uma revolução. Não se trata de um processo que, em um certo momento, possa passar ao comando de María Corina Machado, a amiga de Vargas Llosa e Javier Milei. Não há compatibilidade possível entre uma revolução e certas bobagens típicas de uma democracia liberal. Eleições livres, por exemplo. Um tribunal independente, ou mesmo aquele teatro que foram os Acordos de Barbados. Vem aí a segunda parte da sentença: a revolução tem o Exército. González Urrutia pode ter feito 80% dos votos. Pode também fazer enormes comícios e ser reconhecido como presidente por quarenta ou cinquenta países, como aconteceu com Juan Guaidó. Mas é um profeta desarmado. Não haverá uma Revolução de Veludo, como se fez com Havel, no Lanterna Mágica, em Praga. E essa é a primeira lição dos últimos dias, na Venezuela.
É possível especular que as eleições tenham complicado um pouco as coisas para o regime. Guaidó não foi eleito, ao contrário de Urrutia, que, além de tudo, parece ter ganhado por ampla margem. É evidente que isso faz diferença, se a ideia de legitimidade democrática ainda fizer algum sentido. E há María Corina, uma mulher de fala pausada e firme, que entende de política, tem carisma e apoios mundo afora. E votos, na Venezuela. Dito isso, a oposição vai perder o jogo, mais uma vez. Afora o controle total das instituições, Maduro dispõe daquilo que conta de fato: uma aliança sólida com o eixo liderado por China e Rússia na nova Guerra Fria global. E conta com uma segunda camada de apoio diplomático no continente, a partir do eixo formado por Brasil, México e Colômbia. A partir daí, o maior ou menor apoio de países democráticos, incluindo Estados Unidos e União Europeia, surge como um dado relevante, mas longe de ser decisivo.
De todo esse cenário melancólico surge a figura de Lula, que se tornou uma peça-chave em todo esse teatro. E era previsível que fosse assim. Lula é hoje o “líder histórico” da esquerda latino-americana. Não tem, vamos convir, nenhuma chance real de mudar qualquer coisa no processo. Se caísse algum raio “democrático” em sua cabeça e ele decidisse reconhecer Urrutia, nada de fato aconteceria. Maduro diria que Lula enlouqueceu, e seria mais uma vez aplaudido por sua plateia privativa.
Mas há um peso simbólico. Lula sabe disso, e se equilibra em uma linha tênue: precisa manter sua fidelidade aos amigos ditadores latinos. E precisa preservar sua imagem global de um “democrata”. De qualquer forma, Lula dará um jeito nisso. Ele é um craque, afinal de contas, e também possui com sua plateia cativa. Em algum momento, dirá que é preciso “respeitar um país soberano”, recomendará uma nova rodada de negociações, quem sabe agora em Aruba, e tudo ficará na mesma. E novamente cumprirá seu papel de principal fiador do chavismo no continente.
O governo opera claramente nessa direção. E com maestria. Observem a retórica esperta sobre “aguardar a divulgação das atas”. Sobre “recorrer à Justiça” e a necessidade de “negociação”. A conversa aparentemente sóbria sobre “evitar um novo Guaidó”. E a tese cínica de que o problema deveria ser resolvido “pelos próprios venezuelanos”. No conjunto, uma imensa e desavergonhada conversa fiada. Não há Justiça independente na Venezuela e a conversa sobre apresentar atas e abrir alguma negociação (sobre o que, exatamente?) é apenas uma forma de o regime ganhar tempo. O ponto que o governo brasileiro recusa é exatamente o único que poderia dar algum alento ao processo, e mesmo por isso rechaçado por Maduro: a supervisão externa de uma recontagem dos votos. Foi esse o ponto recusado pelo Brasil da resolução da OEA que faria uma condenação a Maduro. E é o tema crucial. O único que o regime chavista não pode aceitar.
“Lula se tornou uma peça-chave em todo esse teatro das eleições”
Não há nenhuma novidade nisso. Acho engraçado ler, na mídia, que Lula está cometendo um “erro”. Se há uma virtude nas atitudes de Lula em todo esse processo é a coerência. Lula apoiou o regime chavista, na Venezuela, desde o seu início. Regime que produziu sistematicamente uma autocracia, desde o seu início, quando subordinou os demais poderes, e em especial a Suprema Corte, ao Executivo. Isto é, ao próprio Hugo Chávez. E todos se lembram do “Chávez, a tua vitória será a nossa vitória”, gravado por Lula nas eleições de 2012. O mesmo se dá com o PT. Ainda agora, em 2022, quando explodiram manifestações populares em Cuba, feitas por gente miserável gritando “liberdade” pelas ruas destruídas de Havana, o que fez o PT? Uma nota de “apoio e solidariedade incondicionais ao povo e ao governo de Cuba”. Novidade zero. Quando Fidel morreu, Lula disse que sentia “como a perda de um irmão mais velho”, chamando-o de “o maior dos latino-americanos”. Vale o mesmo para a Nicarágua. Ainda na antevéspera da campanha eleitoral brasileira, Lula deu uma entrevista à TV espanhola sugerindo não haver nada de mais com os mandatos sucessivos do ditador Daniel Ortega. “Se a Angela Merkel pode, por que o Ortega não poderia?”, sugeriu.
Isso poderia ser diferente? É claro que sim. O vezo autoritário não é um destino. É uma escolha. Ainda me lembro do chanceler Luiz Felipe Lampreia, no governo de FHC, cometendo o sacrilégio de se reunir com Elizardo Sánchez, dissidente cubano e presidente da comissão nacional de direitos humanos. Foi pouco, na verdade, mas marcou uma posição de certa dignidade. É o mesmo caso de Gabriel Boric, que traduz uma ideia bastante distinta do que significa ser um líder de esquerda. Ele deixa claro que há uma linha que não deve ser cruzada. Suas posições me fazem lembrar da distinção que um dia escutei de Jorge Castañeda: na América Latina, dizia ele, temos a esquerda carnívora e a esquerda vegetariana. Carnívoros seriam cubanos e chavistas, enquanto Lula, os chilenos e uruguaios, da Frente Ampla, seriam a gente boa da esquerda, ajustada aos modos e valores da democracia liberal. A distinção é boa, mas não funciona com Lula, no plano das simpatias latinas, em que o gosto pela carne parece evidente.
A última moda de parte de nossa esquerda é sugerir que, agora que as coisas ficaram de fato vergonhosas, o chavismo não seria mais um regime de esquerda. Na dança das palavras, teríamos um estranho conceito imune aos fatos. Ainda me lembro do argumento de Francisco Weffort, nos anos 80, à época da transição, perguntando “Por que Democracia?”, em um livro hoje esquecido. Sua esperança, quem sabe, era de que a esquerda pudesse ter aprendido alguma coisa com o rastro de violência e autoritarismo da tradição socialista e revolucionária, e pudesse incorporar a democracia como um valor. Não apenas como um novo caminho, dizia ele, mas “um novo jeito de caminhar”. Guardei aquelas palavras e agora elas me voltam, quando vejo a indiferença diante dos mortos na Venezuela, diante de uma eleição vergonhosamente fraudada e de uma revolução pífia, que não passa de um exercício cotidiano de violência. A verdade é que, quase quatro décadas depois de nosso reencontro com a democracia, aquela provocação do professor Weffort prossegue em aberto, à procura de uma resposta.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905