Sou da época em que o aeroporto era tido como “setor estratégico” e, por causa disso, tinha de ser estatal. Nunca entendi aquilo direito. Uma vez perguntei a um defensor da tese, isso lá pelos anos 1990, e ele me respondeu: “Pelo controle dos voos; só militar pode cuidar disso”, e encerrou o assunto. Achei esquisito, mas tinha lá sua lógica. Risco de ataque terrorista, risco de o cara dormir no ponto e os aviões se chocarem. Alguma coisa nessa linha.
O mesmo valia para o saneamento básico, para as estradas e os portos. “Porto é área de segurança nacional!” Até hoje leio essas certezas, com ponto de exclamação e tudo, em publicações de sindicatos. Hoje tudo isso soa meio paleolítico, mas foram essas ideias que por muito tempo pautaram, e de certo modo ainda pautam, a nossa visão sobre o papel do Estado na economia e na sociedade.
São ideias que vêm de longe. No mínimo dos anos 1930, com Getúlio, e depois a partir de 1964, com nossa segunda longa ditadura. Jorge Caldeira, talvez com exagero, chama Roberto Campos, que comandou a reorganização do Estado nos primeiros anos do golpe, de “o maior estatizador da história do Brasil”. Difícil disputar com Geisel. No conjunto, os militares de 64 acrescentaram 10% do PIB à carga tributária brasileira.
E entregaram o país quebrado. O resultado foi a década perdida de 80, quando conseguimos piorar mais as coisas, na Constituição de 1988. Ela foi ótima para a democracia. Consolidou o estado de direito, mas foi péssima no modelo de gestão. Gerou uma enorme burocracia pública, deu estabilidade no emprego a todo o funcionalismo, e por aí vai.
Nos anos 1990 ensaiamos uma bela reforma do Estado, sob a batuta do ministro Bresser Pereira. Descobrimos uma coisa simples: o que é público não precisa ser estatal. Descobrimos que o Estado não precisa fazer tudo, mas o essencial: ser um bom regulador, assegurar respeito aos direitos das pessoas e bons serviços públicos, ainda que não geridos pela máquina pública.
E aí as coisas começaram a acontecer. O governador Mário Covas chamou boas instituições hospitalares de São Paulo e disse uma coisa simples: são vocês que sabem administrar hospitais, não o governo. Surgiram as organizações sociais de saúde, que hoje comandam alguns dos melhores hospitais públicos do país, como o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Depois fomos adiante. Descobrimos que os hospitais do SUS não só não precisavam ser estatais, como podiam dar lucro. Foi o que fez o governo da Bahia, comandado pelo PT, com o modelo das PPPs, tendo como primeira unidade o premiado Hospital do Subúrbio, em Salvador.
Tempos atrás achei graça na tagarelice sobre a “privatização do SUS”, que surgiu com um decreto do governo autorizando estudos sobre “parcerias com o setor privado” na saúde. Exemplo perfeito da maluquice nacional. Mais de 60% das unidades de saúde da capital paulista já são geridas por organizações sociais privadas. Ainda agora, em meio à pandemia, foi o setor privado que aportou mais de 180 milhões de reais para a construção da Fábrica de Vacinas, do Butantan. No Brasil é assim. O mundo real parece andar à frente da retórica política.
Fomos aprendendo mais. Aprendemos que parques ambientais não precisavam ser estatais. Nosso primeiro grande exemplo foi o Parque do Iguaçu, no Paraná, concedido à gestão privada no fim dos anos 90. Estudo do TCU mostrou que, entre 2013 e 2016, o parque remunerou o Instituto Chico Mendes (ICMBio) em mais de 76 milhões de reais. O ICMBio é a autarquia federal que cuida de mais de 300 reservas ambientais brasileiras. Além de melhorar a gestão, cada nova concessão faz crescer a capacidade do governo para investir nos parques com menos atratividade econômica.
“No Brasil, o mundo real parece andar à frente da retórica política”
Os exemplos poderiam se multiplicar. Quando as pessoas vão a um concerto da Osesp ou da Filarmônica de Minas Gerais, assistem a um espetáculo na Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba, visitam a Pinacoteca do Estado de São Paulo ou o Museu do Amanhã, no centro do Rio de Janeiro. Ou ainda quando saem para andar de bicicleta no Parque Ibirapuera, ou para jantar no Embarcadero, a novíssima concessão feita no antigo Porto de Porto Alegre, elas talvez não percebam, mas estão em lugares onde o governo deu certo. Deu certo porque soube produzir uma saudável divisão de trabalho. Na expressão consagrada de David Osborne, o governo decidiu navegar em vez de remar. Definiu grandes metas e ofereceu segurança jurídica para que o setor privado investisse. E a partir daí as coisas engrenaram.
E a educação? Tem de ser estatal? Se já sabemos que os aeroportos não precisam, que o saneamento básico, as orquestras, os hospitais e os parques ambientais não precisam, por que deveria ser diferente com as escolas? Não precisa. É só mais um tabu brasileiro. E de um tipo perverso, visto que os mais ricos há muito já se “autoprivatizaram”, colocando suas crianças em boas escolas particulares. Presos ao monopólio da escola estatal só ficam os mais pobres.
Exemplo de que as coisas não precisam ser assim é um programa muito pouco pesquisado no Brasil, o Prouni, que é possivelmente o maior programa de voucher educação do planeta. Nem Milton Friedman, o herói do liberalismo, teria pensando coisa melhor. Pesquisa recente do Ipea mostrou que os alunos que receberam bolsa integral, de famílias com renda per capita de até 1,5 salário mínimo, tiveram nota média 10 pontos superior no Enade à dos não bolsistas, que incluem os alunos de universidades públicas.
O modelo traduz a mudança de cabeça que precisa acontecer: o governo não gera burocracia, deixa o setor privado fazer a gestão, financia diretamente os alunos, que de quebra recebem o direito de escolher onde estudar. O mesmo direito que seus colegas mais ricos sempre tiveram.
A verdade é que há muita iniciativa inovadora e que vem dando certo no Brasil. E é nelas que devemos prestar atenção. Elas surgem quando o governo tira sua mão pesada do jogo. Criam regras claras, permitem que as pessoas trabalhem, passam a custar menos e mudam o foco: mais atenção aos cidadãos e menos às velhas corporações que sempre estiveram no comando. De forma que me permito, escrevendo este artigo, algum otimismo. Se soubermos direcionar nosso olhar para o que nós mesmos construímos de melhor, nesses anos todos, descobriremos o caminho a seguir.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743