Ela foi demitida por e-mail. “Pedimos que você deixe sua posição, imediatamente”, dizia o texto. O trabalho era voluntário. A demitida era Fran Itkoff, uma senhora de 90 anos, que há sessenta se dedicava à Sociedade Nacional de Esclerose Múltipla (MS Society). O marido havia se tratado lá, e ela também, além de ter recebido prêmios pelo seu trabalho. Não adiantou. Seu pecado foi ter se atrapalhado no uso dos pronomes, conforme definido pela área DEI (“Diversidade, Equidade e Inclusão”) da instituição. “Não conseguia entender”, disse ela, “quais os termos podiam ou não ser usados”. Resumindo: foi para a rua. “É irônico”, disse sua filha, “porque eles se dizem inclusivos, mas excluem uma mulher deficiente de 90 anos, voluntária há sessenta”.
O caso veio a público, causou comoção, muitos apoiadores da MS Society ameaçaram retirar suas doações, e a entidade voltou atrás. Tem sido a regra. Se um caso como este vem à tona, a fúria woke é contida. Ao menos por algum tempo. Foi o que aconteceu nas universidades americanas, nos episódios em torno do antissemitismo. Mas o problema está criado. Pode haver um recuo aqui ou ali, mas a irradiação da cultura woke, nas empresas, na imprensa, nas universidades, é um fato de nossa época. Uma vitória pelo cansaço. Das frases generosas, que logo vão se convertendo em “iniciativas”, e logo em “normativas”, e logo em instâncias de poder. Até o momento em que uma senhora deficiente como Fran Itkoff é demitida, sem muita cerimônia, pelo imperdoável defeito de não se entender direito com aqueles pronomes.
O curioso disso tudo é a ladeira escorregadia. Tempos atrás recebi o relato interessante, de um conhecido, sobre o que se passou na empresa em que ele trabalhava, na Califórnia. A coisa começou quando alguém sugeriu, em reunião, que a “diversidade é importante, não é mesmo?”. Quem discordaria? A partir daí, resolveram criar um “comitê”. Comitês são formados por pessoas interessadas no tema. Particularmente neste tema, pessoas interessadas andam, em geral, próximas do que chamamos de “ativistas”. É diferente de alguém montar um comitê de segurança contra incêndios, cuja pauta será técnica. Então o.k., o comitê está lá, e a partir daí brotam as ideias. A primeira foi criar um “curso de reeducação de gênero”, e depois “racial”. Na prática, dizer aos funcionários o que poderia ou não ser dito. Palavras, expressões, pronomes, brincadeiras. Havia uma leitura “sociológica” da realidade americana, que não podia ser contestada. Em um certo dia, os funcionários receberam um formulário, no qual deveriam especificar a “cor da pele”. Gradativamente, os critérios de mérito, para contratações e progressos de carreira, foram devidamente “ajustados”. Por fim, abolidos. Depois, a empresa criou sua “diretoria DEI” e passou a obedecer a uma espécie de equação identitária. A fórmula logo passou a ser usada também para qualquer encontro, conselho, comitê ou campanha de marketing. Mais adiante, foi criado outro formulário, em que os funcionários de grupos “não minoritários” deveriam declarar seus “privilégios”, como forma de “tomada de consciência”. E, ainda depois, um sistema de monitoramento para verificar o que os funcionários faziam fora da empresa. A ideia era avaliar sua “conformidade” com os valores da companhia. A coisa toda era operacionalizada com a ajuda de um disque-denúncia, em que qualquer um podia registrar alguma “incorreção” de um colega, anonimamente. No fim, surgiram “investigações”, e logo processos. Àquela altura, meu amigo achou que o ambiente havia se tornado pesado demais. “Havia uma raiva silenciosa”, diz ele, “mas ninguém dizia nada”, porque pareceria uma “forma velada de preconceito”. No fim, ele foi embora. Abriu uma startup.
“A fúria woke nas empresas e universidades é um fato de nossa época”
Chama atenção a facilidade com que se pode transitar de práticas de “inclusão” e palavras generosas para uma lógica de controle e exclusão. Era o traço sombrio que Camus encontrava nas revoluções. Tema de seu O Homem Revoltado. A ideia de que “toda convicção humana, levada a seu extremo, tende a ferir seu impulso original”. A “diversidade” é relevante, mas logo faço uma restrição. Digo quais grupos ou traços humanos são “diversos”. Distingo identidades positivas, que devemos celebrar, e o “resto”, cuja alternativa é a não expressão. Valendo o mesmo para as ideias, para o humor, para a “ofensividade” e para a estética. E logo para os direitos. Em um belo dia, descubro que há muito se cruzou uma fronteira. A filósofa Susan Neiman, autora de A Esquerda Não É Woke, toca nesse ponto. Ela opõe o woke ao “universalismo”. A ideia central na formação moderna de que devemos ser tratados como iguais, em consideração e direitos. O que implica um princípio de simetria: o que vale para um indivíduo ou grupo deve valer para todos. Abrindo-se mão desse princípio ético, vem o mal-estar contemporâneo. Uma ideologia exaustiva pode triunfar em uma organização. Mas é difícil que isto aconteça em uma grande sociedade. Penso nisso quando observo a cruzada anti-woke de Elon Musk, o frisson em torno de Jordan Peterson, sem falar em toda a “reação conservadora” a essa lógica. Sem juízo de valor. Talvez nosso destino seja mesmo a guerra. A guerra cultural, na qual estamos metidos. Ela e sua enorme indústria de gente barulhenta, na internet. Se não queremos a guerra, talvez valha ouvir o alerta de Camus: a ideia de que toda utopia deve encontrar seus limites. Um ideal de moderação, próprio de uma sociedade liberal. Gosto da solução de Camus, mesmo sabendo que ela não anda muito na moda.
Há ainda outra hipótese: a “submissão”. Foi o título da obra-prima de Michel Houellebecq. O livro conta a história de François, professor universitário entediado em uma França dominada pelo islamismo. Ele resiste, acha tudo surrealista, perde a namorada, que foge para Israel, e encara a solidão. Até ceder. E finalmente aceita “a ideia espantosa e simples de que o máximo da felicidade humana reside na mais absoluta submissão”. Não sei por quê, enxerguei naquela história uma sutil ironia. Houellebecq trata de um caso extremo, o fundamentalismo islâmico, mas seu enredo diz muito sobre nossa cultura obcecada pelo controle. Um mundo no qual a submissão não é um jogo de tudo ou nada, mas um meio de caminho. Um contínuo ajuste de linguagem, humor bem-comportado, autocensura, silêncios. Por vezes fica meio grosseiro, como no caso da senhora Itkoff. Mas quem sabe possa funcionar. Quem sabe o destino de François seja também o nosso destino. Vejo muita gente por aí, bem-ajustada, seja por conveniência, seja pelo cansaço. E muitos parecem ter encontrado aí sua “máxima felicidade”. É isso. Talvez Houellebecq tenha mesmo razão.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886