“O ministro cismou com isso aí”, diz um juiz, em Brasília. “Isso aí” é um cidadão brasileiro. Crítico duro do “sistema”, do próprio ministro, na balbúrdia digital. Como o ministro está “sem sessão”, continua o auxiliar, ele está com tempo para ficar “procurando”. O grand finale vem do próprio ministro: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens (do tal “cidadão crítico”) para vermos se dá para bloquear e prever multa”. Para resumir: primeiro escolhe o alvo político. Depois vai pesquisando na internet para produzir o “laudo”. Isto é, a justificativa de que a autoridade precisa para fazer o que quer fazer. Isto é, censurar, bloquear e tudo que sabemos. Em outro momento, o foco é uma revista. “Vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, diz a autoridade. O juiz responde que havia encontrado apenas matérias jornalísticas e pergunta o que deveria colocar lá. “Use sua criatividade”, responde o chefe, seguido de algumas risadas.
As mensagens reveladas por Glenn Greenwald e Fabio Serapião, na série de reportagens publicadas esta semana, são um striptease das instituições brasileiras. É evidente que há muito o que vir à tona, há o necessário contraditório e há a investigação minuciosa disso, que deve ser feita. Mas o que já veio à tona é para lá de preocupante. Imaginem uma autoridade de Estado, em Brasília, literalmente pedindo para “disfarçar” o nome de um tribunal, e do próprio ministro, em documentos oficiais. Para não ficar “chato”, ou muito “descarado”. A autoridade pedindo para “ajustar” um documento oficial (haveria outro nome para isso?), dizendo: “Onde se lê o nome de um tribunal (que realmente fez o pedido), ponha o nome de outro tribunal”. Pois é. Não há muito o que dizer sobre tudo isso. Os fatos falam tão alto que qualquer comentário soa um pouco irrelevante. O modus operandi é claro. Define-se o foco político e logo se demanda da assessoria que se produzam as “provas”. Como definiu um jurista bem-humorado, “atira a flecha e depois pinta o alvo”. Punições ad hoc, sem devido processo, sem provocação, sem contraditório. E, nesse caso, feitas por um tribunal eleitoral fora do período eleitoral. É isso. Nós nos transformamos na única democracia do planeta onde os direitos individuais mais elementares de um cidadão flutuam à mercê da subjetividade de uma autoridade de Estado. Autoridade que fica “braba”. Que “cisma” com este ou aquele. E a partir daí “é uma tragédia”, como escutamos em um dos áudios.
Tragédia, sim. Mas para quem vai em cana sem nem saber por quê. Quem é banido das redes “de ofício”. Quem tem as contas bloqueadas por um papo furado no WhatsApp. Quem morre num presídio de Brasília, sem eira nem beira, porque ninguém despachou o processo. Uma tragédia, de fato. E quem sabe merecida. Minha intuição é que nos transformamos exatamente no país que desejamos ser.
Boa parte do Brasil deseja que as coisas sejam assim. Deseja que tenhamos uma “democracia de tutela”. Com a condição de que o grande xerife mande fazer laudo só para o “outro lado”. Enquanto for assim, tudo estará bem para boa parte da imprensa, da academia, das “instituições” e do mundo político. O amor à “abstração da regra”, vamos convir, nunca foi especialidade brasileira. Não passa de autoilusão imaginar que nosso vezo patrimonialista só funciona nas relações entre o Estado e o mundo dos interesses materiais. Ele está lá, inteirinho, no modo como lidamos com o universo dos direitos. No servilismo do auxiliar da autoridade que pergunta: “O que eu devo escrever nesse dossiê?”. Na autoridade que diz: “Muda aí o nome do tribunal”. Que alerta que o “doutor” está com pressa, quer a “prova” logo, porque quer fazer o que já decidiu fazer. Tudo sob uma certa ficção em torno da legalidade autorreferente, ajustada aos imperativos do “contexto”.
“Boa parte do Brasil deseja uma ‘democracia de tutela’ ”
Ainda na outra semana tivemos notícia da soltura do Filipe Martins. A prisão cujas razões formalmente apresentadas nunca existiram. Do sujeito que de fato nunca tentou fugir, nunca saiu do país, e que mesmo assim ficou lá, em uma prisão no Paraná, durante seis meses. Alguém preocupado? Alguém vai responder por isso? Ou há muito já entendemos o jogo? Cá entre nós, é o mesmo caso daquela “senhora que pintou uma estátua com batom”, na ótima definição do ex-ministro Nelson Jobim esta semana. A Débora Santos, que de fato pintou uma frase irônica naquela estátua da Justiça, na frente do STF, e está em cana há catorze meses, com os dois filhos pequenos por aí, à espera de um dia terem a mãe de volta, em casa.
Jobim é um raro exemplo de intelectual brasileiro que distingue o mundo da política, com suas paixões, e o mundo dos direitos, pautado pela lei e sua impessoalidade. A distinção republicana, por excelência. Esta semana ele definiu o 8 de Janeiro de maneira precisa: não uma “tentativa de golpe”, mas a “catarse pela frustração com a não obtenção de uma intervenção militar”. No transe brasileiro, nada disso importa. Há uma narrativa política, há alguém que detém o poder e há suporte na sociedade. A partir daí, ajusta-se o universo dos direitos. Um pouco como se aprende nas revelações da semana. Ajustam-se os laudos, os documentos, as razões para justificar um delito. E sua própria tipificação. Tudo se move, no calor da política. E a “abstração da regra” soa não muito mais do que o resmungo de quem perdeu. Simplesmente perdeu. Quando observo essas coisas, me vem à lembrança a antiga provocação de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, em nossa tradição. Sua referência é tão distante quanto o século XIX. A “disparidade entre a sociedade escravocrata e as ideias do liberalismo europeu”. Mas me soa tremendamente atual. A estranheza de uma elite que enche a boca para falar em democracia, mas aplaude o “deixa que eu dou um jeito” para arrumar provas e fazer o que a Autoridade deseja fazer. Que fala em “garantismo”, mas com a boca torta pelo uso do cachimbo. Em um mundo em que a retórica e sua negação, no universo da democracia liberal, convivem sem problema.
Talvez por isso minha referência sempre será Eleanor Norton, a advogada negra que em um dia qualquer de 1969, diante da Suprema Corte americana, defendeu os direitos de Clarence Brandenburg, um abjeto líder da KKK. E o fez por entender algo bastante simples: que os direitos dele eram ao mesmo tempo os nossos direitos. Ela o fez em nome de um princípio. Em nome da Constituição. Algo que a “obrigava por vezes a defender pessoas que não me defenderiam”. Essa história sempre me tocou. E digo que sobre isso não alimento lá grandes expectativas no Brasil de hoje. Vejo que já fomos contaminados pelo vírus do ódio e da paixão política, em um país no qual nunca prosperou, de fato, uma tradição liberal-democrática. E por isso a relativização do direito. O truque. O ministro nervoso, o e-mail inventado, o laudo feito sob medida. O abuso, enfim. Tudo que faz tanta gente boa sinceramente desejar ir embora, simplesmente. Largar de mão esta república que parece não ter mais jeito.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906