“Prefiro fazer minha própria poupança”, me diz o motorista do Uber, numa corrida até a faculdade. “Já recolho para o MEI, que me dá liberdade e uma aposentadoria mínima, pra que isso agora?” Ensaiei uma resposta, mas ele se empolgou: “E essa de fixar 32 reais por hora? Quem inventou isso? Nosso trabalho não é por hora, tem muitos custos envolvidos”, e por aí foi. Quando eu ia quase desembarcando, deixou uma frase no ar: “O governo não tem mais no que se meter?”. A frase me ficou na cabeça, naquela manhã, enquanto observava a onda de protestos de associações de motoristas de aplicativos, país afora. O governo parece ter conseguido uma proeza: desagradar a todo mundo. E mais: injetar o vírus da política em um ambiente de mercado. Sindicato, tabela de preço, recolhimento para o governo, acordo coletivo. Um mundo de algum lugar do passado se intrometendo na nova economia digital, cuja pauta é exatamente a autorregulação, a autonomia das pessoas para decidir como trabalhar e o que fazer com seu dinheiro.
A partir daí, os exemplos foram brotando na minha cabeça. Naquela mesma semana o governo havia resolvido, pela enésima vez, se meter na gestão da Petrobras. O país fez a Lei das Estatais, em 2016, para afastar a intromissão política na gestão de nossas empresas. A lei deu certo. As estatais melhoraram sua performance e as ações da Petrobras, que chegaram a valer pouco mais de 4 reais, no auge da crise de 2016, multiplicaram seu valor em dez vezes. Diante disso, o que nosso genial Leviatã resolveu fazer? Terminar com a lei, numa canetada monocrática, no STF, e voltar a interferir. Todos acompanhamos a decisão sobre pagar ou não 44 bilhões de reais em dividendos aos acionistas da empresa, tomada em uma reunião política, no gabinete do presidente da República. E logo em seguida a empresa perdendo coisa de 50 bilhões de reais em valor de mercado. “Uma trapalhada”, li de um simpático jornalista. É isso, pensei, seja nos aplicativos, seja na Petrobras, é nosso Leviatã trapalhão que anda por aí nos assombrando, feito um fantasma que não desencarna.
Daria para ir longe nisso. O professor Marcos Mendes organizou um livro com mais de 800 páginas descrevendo erros em políticas públicas, nas últimas duas décadas. Uma espécie de autópsia do nosso Leviatã trapalhão. Um dos casos mais sugestivos conta dos incentivos fiscais, em particular entre 2009 e 2015, a um custo de 285 bilhões de reais (apenas no chamado PSI, o Programa de Sustentação do Investimento), dados especialmente a grandes empresas, com efeitos pífios no crescimento. Ao final, entre 2015 e 2016, todos sabemos o que aconteceu. O maior exemplo, nos tempos atuais, é o modelo de distribuição de dinheiro público via “emendas parlamentares”. No orçamento deste ano, são 54 bilhões de reais. Dinheiro suado do pagador de impostos espalhado por aí, ao sabor dos interesses paroquiais de nossos parlamentares. Qual a lógica disso? A mesma que leva ao nosso “fundão” de 5 bilhões de reais. A lógica do lobby e dos grupos de pressão. A começar pelo maior de todos: o próprio sistema político.
Isso tudo me faz lembrar de uma lição de Adam Smith, em sua Teoria dos Sentimentos Morais, segundo a qual os governos, quando se põem a organizar a “atividade das pessoas privadas”, tendem a supor um conhecimento de que não dispõem. Ele faz uma sátira com o que chama de “homem de sistema”. Um tipo presunçoso que parece imaginar a sociedade como um tabuleiro de xadrez. Tão inebriado com a “beleza de seu próprio plano ideal”, esquece de um detalhe: que os agentes econômicos, ao contrário das peças de xadrez, agem por conta própria, muito longe do que prescreveria o “interesse público”. Virtualmente todas as trapalhadas de nosso Leviatã se encaixam aí. Quem não se lembra dos descontos para a classe média (os 10% mais ricos da população) comprar um carro zero? Para o contribuinte, a brincadeira custou coisa de 1 bilhão de reais. Para a turma do governo, o custo foi zero. Brutal transferência de renda ao avesso, dos mais pobres para os mais ricos. Outro exemplo é a alíquota zero concedida aos taxistas, na reforma tributária. Outro bilhão de reais na conta do contribuinte, sem razão pública alguma, e sem que ninguém tenha notado. É a regra, aliás, do Leviatã trapalhão: concentrar benefícios em alguns setores, bons de lobby, como montadoras e taxistas, e distribuir os custos de modo difuso, para a sociedade, ocupada com as migalhas do entretenimento político.
“O maior de todos os grupos de pressão é o próprio sistema político”
Para ser justo, o Leviatã de vez em quando acerta. Isso acontece, em regra, quando ele assume seu lado reformista e modernizador. Foi assim com o real e as privatizações, nos anos 1990, e as recentes reformas trabalhista e previdenciária. E quando acerta o foco: faz um programa como o ProUni, permitindo que milhares de jovens acessem a universidade, com baixo custo e direito de escolha. Ou quando cria uma rede de proteção social, com o BPC e o Bolsa Família. Não é difícil identificar quais as linhas de força para colocar nosso Leviatã nos trilhos. É só observar o que se fez com o Marco do Saneamento. Competição, regras claras, abertura ao investimento privado. Não há segredo. Boas instituições, estabilidade jurídica, agências reguladoras independentes. O país sabe o caminho, mas por alguma razão parece não resistir, de tempos em tempos, ao ilusionismo do Leviatã trapalhão. Outra linha de força é a autorregulação. Cada vez mais, a tecnologia vai permitir que as pessoas criem sistemas de trocas sem ou com a mínima presença dos governos. Sistemas descentralizados, baseados na confiança e na informação compartilhada. São os modelos da sharing economy, como o Uber e o Airbnb, em que a mão pesada do Estado é um estorvo. Outra tendência é a profissionalização ou “autonomização” das instituições de Estado. Foi o que fizemos com o novo BC independente. Retirar a gestão da política monetária do dia a dia da política e sua crônica instabilidade. Por fim, a crescente especialização do Estado. Deixando que o setor privado faça a gestão de aeroportos, parques nacionais ou urbanos, como o Ibirapuera, gerencie nossos hospitais públicos, como faz o Einstein e o Sírio Libanês com o modelo das organizações sociais, em São Paulo. O Leviatã não sai de cena, mas recua para uma função de inteligência.
Daria para ir longe aqui. O importante, no fundo, é a tomada de consciência. É a sociedade não vestir a touca da hipossuficiência. Não cair na conversa fácil dos políticos de que é preciso “aumentar impostos” porque “faltam recursos”. Recusar, enfim, as trapalhadas do Leviatã, e por aí ir trilhando, passo a passo, nosso caminho para a prosperidade.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887