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Nossa alma iliberal

O combate às fake news se tornou a nova pedra de toque para a censura

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 12 nov 2022, 08h00
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  • QUE PAÍS É ESTE? - O Abaporu: símbolo de uma nação traduzida em Raízes do Brasil -
    QUE PAÍS É ESTE? - O Abaporu: símbolo de uma nação traduzida em Raízes do Brasil – (Tarsila do Amaral/MALBA/.)

    O professor Marcos Cintra é uma figura afável e um economista com longo histórico de contribuições ao país. Por estes dias, fez críticas a nosso sistema de votação. Nesse aspecto, em especial, discordo de sua visão, mas isso não vem ao caso aqui. O fato é que ele usou de sua prerrogativa de cidadão, em uma democracia, e disse enxergar inconsistências no registro dos votos feito nas urnas eletrônicas. Disse que “respeitava as instituições”, mas achava que o TSE deveria se manifestar. O TSE se manifestou: baniu o professor das redes sociais. Como geralmente faço, fui ler a decisão do ministro para entender qual era exatamente o crime cometido por Cintra. A razão era a de sempre: “Ataques às instituições democráticas”. O raciocínio pareceu ser o seguinte: como o professor colocou em dúvida, mesmo que com os devidos cuidados, o funcionamento das urnas eleitorais, e como, na interpretação do ministro, isso atenta contra a democracia, e como atentar contra a democracia seria um crime, então estaria autorizada a sua punição “de ofício”.

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    Muita coisa chama a atenção nesse raciocínio. Em primeiro lugar, a constatação simples de que nada tem amparo em nenhuma lei existente no país. Atentados contra a democracia são claramente tipificados e restringem-se a “violência ou grave ameaça” contra o estado de direito. Por óbvio, não havia nada disso nas palavras do professor Cintra. A decisão parecia conter uma premissa oculta: nenhuma crítica será permitida ao sistema de votação, dado que ele é infalível. Voltamos a uma discussão escolástica: não é necessário que você diga, objetivamente, que o sistema é falho. Basta que você duvide dele, ou não creia com a “fé de uma criança”, como tantas vezes escutei na escola bíblica, para ser considerado um pecador. Por último, chama a atenção que a censura não diz respeito ao que ele já disse, pois para isso bastaria mandar que ele apagasse o que escreveu, mas a tudo o que ele ainda poderia dizer, daqui para a frente. Isto é: censura prévia. Algo que, todos sabemos, é rigorosamente proibido pela Constituição.

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    O Brasil não está sozinho quando toma atitudes como essa. Ainda por estes dias, a Turquia aprovou uma lei criminalizando as fake news. Um deputado, opondo-se ao projeto, pegou um martelo e espatifou o seu próprio celular. Ele queria dizer que aquela era sua forma de conexão com o mundo e que não queria viver sabendo que podia ser “desligado”, a qualquer momento, por uma decisão do Estado. O mesmo caminho foi trilhado pela Hungria, durante a pandemia, criminalizando quem espalha “falsidades ou verdades distorcidas”. Turquia e Hungria são governadas por duas estrelas do chamado novo iliberalismo global. A tendência de corroer direitos individuais com base em ajustes legais feitos, em regra, a partir dos próprios instrumentos da democracia. As organizações de direitos civis reclamaram que os tipos penais aprovados eram exageradamente vagos e abriam espaço à censura. Quando li aquilo achei engraçado. Aqui no Brasil não temos nenhuma lei genérica criminalizando as fake news, mas na prática já o fazemos há bom tempo. Quase todas as razões já foram usadas para punir e censurar. “Inverdades”, “ataques às instituições”, “estado de exceção”, “desordem informacional”, “descontextualização”. A lista é grande e sujeita a inúmeras variações. O “combate às fake news” se tornou a nova pedra de toque para a defesa da censura mundo afora. E, se alguém achar que é só aqui que censuramos pelas melhores razões, lamento dizer: todos, sem exceção, acham exatamente a mesma coisa.

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    Diversas vezes escrevi aqui que a censura sistemática deixaria as pessoas com medo. Dito e feito. Em um grupo no WhatsApp, um conhecido economista posta um áudio com uma explicação técnica sobre as urnas e em seguida apaga, “por precaução”. Vejo jornalistas sendo demitidos de emissoras “para evitar problemas”, e uma penca de comunicadores e deputados banidos, e outros em silêncio, simplesmente porque não têm como reagir ou se defender, caso também sejam expurgados da esfera digital. “É como se você fosse exilado dentro de seu próprio país”, me disse um dos que andam com medo. O caso dos deputados é emblemático. A Constituição diz que eles são “invioláveis” em razão de quaisquer de seus “votos ou opiniões”. Na prática, descobrimos que isso não vale grande coisa, e quase não há reação. Estamos nos acostumando. Muitos até comemoram. Ao menos enquanto a pimenta arder só no olho dos outros.

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    “O combate às fake news se tornou a nova pedra de toque para a censura”

    É aí que mora o problema. Não apenas a lei foi subjetivada, mas também os nossos juízos sobre sua aplicação. Diante de banimentos como os do professor Cintra e tantos outros, a primeira pergunta que surge na cabeça das pessoas não é “qual seria o enquadramento legal?”. A pergunta é: “De que lado do jogo está essa pessoa?”. Minha tese é que temos aí um magnífico sintoma de nossa falta de vocação para viver em uma sociedade liberal. Algo que me fez lembrar de Sérgio Buarque e seu livro premonitório, Raízes do Brasil. Mais especificamente, seu clássico argumento sobre a “cordialidade brasileira”, esse traço que Buarque identifica em nossa formação cultural e que nos leva continuamente a pessoalizar, ou “subjetivar” nossa relação com o espaço público. O resultado é nossa dificuldade com a “abstração da regra”, que está na base do liberalismo democrático. “Todo afeto entre homens funda-se em preferências”, escreve Sérgio Buarque, e conclui: “amar alguém é amá-lo mais que os outros. Uma unilateralidade que entra em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo”. O ponto é que personalismo também diz respeito a nossos juízos e opiniões. A depender de nossos vínculos afetivos, com esse ou aquele lado, ou líder político, ajustamos sem muita cerimônia nossos julgamentos sobre o que é verídico ou inverídico, legal ou ilegal, democrático ou nem tanto assim. Liberdade de expressão? O.k., mas para quem mesmo? Censura prévia? Não pode, mas e em circunstâncias excepcionais? Trata-se de um jeito de enxergar o mundo que penetra na academia, na mídia e mesmo na Justiça. E aí temos um problema. Uma boa sociedade liberal é feita do cuidado algo litúrgico com o princípio e o “procedimento”. Daí a insistência em coisas como o “devido processo legal”, o contraditório, a previsão das coisas em lei. E a demanda por objetividade nos temas legais. Garantia de que todos serão tratados como iguais, e não a partir dos afetos e opiniões de quem detém o poder.

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    Tudo isso vai na contramão daquilo a que o país assiste, desde a criação dos chamados “inquéritos das fake news”. Fomos criando um ordenamento jurídico personalíssimo, e hoje somos uma estranha democracia em que alguém pode ser “apagado” do mundo digital, que encerra quase todo o debate público, por meio de um despacho e um punhado de palavras de vago significado. Devagar, vamos adquirindo traços de uma democracia iliberal. Muita gente vibra com isso, mas não deveria. Em uma democracia que se preze, quando os direitos de um só cidadão são atingidos, os direitos de todos o são. Oxalá o silêncio forçado do professor Cintra, por estes dias tristes, possa nos ensinar mais do que qualquer uma de suas palavras.

    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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    Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815

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