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Por Fernando Schüler
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Lições republicanas

Em uma democracia, os cidadãos podem produzir livremente seus juízos e suspeitas. Os tribunais, não. Estes devem se manter sob a objetividade das leis

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 mar 2022, 08h00

Enquanto todos prestam atenção (com razão) à guerra na Ucrânia, coisas inacreditáveis ocorrem por aqui. O ministro Alexandre de Moraes mandou bloquear as contas do blogueiro Allan do Santos. O Telegram bloqueou, colocando na página censurada uma notificação algo irônica: “Não pode ser exibida porque violou as leis locais”. Teria sido interessante indicar qual exatamente a lei violada. Lei dessas comuns, em democracias, aprovadas pelo Parlamento. No despacho do ministro, lê-se que o blogueiro faria parte de uma “estrutura destinada à propagação de ataques ao Estado Democrático de Direito”. Em outras decisões, ele já havia sido acusado de estimular o “discurso de ódio e polarização”, a “retórica amigo-inimigo”, de “condutas com o fim de desestabilizar as instituições”, promover a “animosidade entre os Poderes”, “organizar reuniões em sua residência com agentes políticos” e, o mais intrigante, “apontar o dedo médio para o prédio do STF”.

Há muitas coisas interessantes aí. A primeira é generalidade. O uso das grandes palavras, que deixam a vigência de direitos individuais à mercê da consideração subjetiva de uma autoridade. Em particular, chama a atenção o uso de expressões e tipos penais abertos próximos aos da finada Lei de Segurança Nacional. Coisas como “fazer propaganda de processos ilegais”, “incitar a subversão” ou “difamar” o presidente e o STF. A “famigerada” lei de segurança nacional foi extinta, mas seu espírito segue vagando por aí. Outro aspecto é a censura prévia. De um analista, aplaudindo a decisão do ministro, leio que “há razões para supor que esses canais serão utilizados para sabotar a confiança nas eleições”. O raciocínio é o seguinte: havendo chance de crime futuro, o melhor é agir logo, calando a voz potencialmente criminosa. Para muita gente, é desse jeito mesmo que se faz uma democracia. O que não é possível é continuarmos a repetir, como um dia disse a ministra Cármen Lúcia, que o “cala a boca já morreu”. Não morreu. A censura prévia está bem viva.

Em uma democracia, os cidadãos podem produzir livremente seus juízos e suspeitas. Os tribunais, não. Estes devem se manter sob a objetividade das leis. Isto é especialmente relevante em uma época de intensa polarização política. Pesquisa recente mostrou que 75% dos eleitores de Biden e 78% de Trump acham que os apoiadores mais engajados do “outro lado” são um “perigo claro à democracia”. É apenas um sinal. Por aqui também observamos o discurso quase obsessivo, à direita e à esquerda, de que o “outro lado” representa um tremendo risco à democracia. Se deixarmos que a predileção política afete nossos juízos, e quem sabe decisões tomadas por agentes do Estado, sobre o direito à liberdade de expressão, teremos um sério problema.

Os Estados Unidos passaram por uma situação de algum modo parecida. Foi em 1798, quando o presidente John Adams assinou o “Ato de Sedição”, que tornava ilegal “escrever e imprimir qualquer coisa falsa, escandalosa e maliciosa contra o governo”. A justificativa era a ameaça de guerra com a França. O historiador David McCullough, biografo de Adams, foi lacônico: “O motivo óbvio era sufocar a oposição republicana”. Ao todo, um deputado e duas dezenas de cidadãos foram presos, boa parte jornalistas. Quem reagiu àquele estado de coisas foi um herói das liberdades americanas. James Madison, autor intelectual do Bill of Rights americano e quarto presidente dos Estados Unidos. Madison escreveu o Virginia Report, de 1800, dizendo que o Ato de Sedição era contrário à Constituição e ao próprio espírito da jovem república.

“O Brasil não tem uma sólida tradição liberal-democrática”

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Sua primeira lição dizia que a liberdade de expressão é uma prerrogativa dos cidadãos, não uma concessão do Estado. O papel da autoridade pública não era fazer “curadoria” de opinião, mas garantir direitos. A segunda dizia que, em uma república, as autoridades não vistas como infalíveis, e que por isso devem aceitar um grau maior de “animadversão”. Isto é: criticidade, embate, duro que seja. Respondendo aos que reclamavam dos “excessos” no uso da palavra, dizia que “certo grau de abuso é próprio do uso de qualquer coisa”, e que era melhor “deixar crescer alguns galhos nocivos” do que, ao cortá-los, “prejudicar o vigor dos que produzem os melhores frutos”.

O Brasil também é uma república e também aqui a liberdade de pensamento é uma propriedade dos cidadãos, assegurada pela Constituição. Não passa de uma falácia retrucar dizendo que a “liberdade de expressão não é um valor absoluto”. É evidente que não. É por isso que definimos, em lei, criminalizar o racismo. Mas isso não significa que pessoas possam ser presas, sem direito ao contraditório e ao devido processo, se alguma autoridade achar que representam uma “ameaça ao Estado de direito”.

Jacob Mchangama, autor de Free Speech: A History from Socrates to Social Media, diz que, mais dia, menos dia, a liberdade de expressão chega a um estado de “entropia”. Os detentores do poder começam a dizer que “fomos longe demais” e que é preciso “impor limites”. Isso é comum em épocas como a nossa, quando a rápida expansão de uma nova tecnologia faz emergir grupos antes marginalizados, causando incômodo a quem estava acostumado a comandar o jogo. Foi assim à época em que se popularizou a imprensa. Erasmo, no século XVI, vociferava com aqueles “impressos que iriam entupir o mundo com livros e panfletos fúteis, ignorantes, subversivos…”. Hoje não são livros. São blogs e vídeos no YouTube. Tanto quanto no século XVI, teremos de aprender a lidar com esse mundo incômodo.

O fato é que faríamos melhor estudando um pouco de história em vez de perseguir blogueiros irrelevantes. Em uma democracia, não cabe ao Judiciário se comportar como xerife da opinião pública ou grande educador da sociedade. Até por ser inócuo. Da mesma forma que ninguém conseguiu parar a prensa de Gutenberg, e, apesar de todas as fogueiras, livros continuaram a incendiar a imaginação humana, é uma ilusão imaginar, nesta época de proliferação de redes e informação infinita, que um tribunal irá disciplinar a opinião, em uma sociedade aberta. Quando muito, produzirá uma caricatura. Será matéria de estudo sobre uma época de transição, em que a democracia, depois de alguns solavancos, conseguiu ganhar o jogo, mais uma vez.

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O Brasil não tem um Madison, nem uma sólida tradição liberal-­democrática. Precisamos construí-­la. Como sou um inveterado otimista, acho que nossa própria Suprema Corte poderia tomar a vanguarda desse processo. Preservando a mais criteriosa imparcialidade, em vez de ingressar na arena política. Comportando-se não como curadora de opinião, neste país dividido, mas como curadora de direitos, por definições iguais para todos, nesta república que devagar vai aprendendo.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779

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