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Homens napoleônicos

Dostoiévski nos lembra que o que nos faz humanos é fundamentalmente a dor que sentimos quando ultrapassamos certos limites

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 fev 2024, 08h00

Por que ele voltou? Foi a pergunta mais comum, depois da morte do dissidente russo Alexei Navalny, em uma colônia penal do antigo Gulag, na Sibéria. Ele já não havia sido envenenado um ano antes e escapado por pouco? Alguma dúvida de que ele seria preso no aeroporto e transformado em um “preso de consciência”, em uma solitária, no meio do gelo? Então por quê? “Ele queria dizer que as pessoas não tivessem medo”, escreveu Natan Sharansky, também ele um antigo dissidente, na era soviética. A resposta é bacana, mas um tanto retórica. “A Rússia é meu país, Moscou é minha cidade, tenho saudades”, disse Navalny, antes de sair da cidade bucólica em que ele vivia exilado, na Alemanha. A verdade é que o roteiro foi cumprido à risca. Em uma manhã qualquer de fevereiro, no IK-3, a “lobo polar”, uma das mais duras e distantes prisões russas, Navalny caiu morto. Corpo retido, sinais de convulsão, silêncio sobre o que aconteceu. Sua mãe ainda fez um vídeo, em meio à neve, à frente daquela prisão no Círculo Polar Ártico, exigindo o direito de enterrar o filho. Talvez consiga, mais adiante, quando o tempo fizer o seu trabalho, e a “suave indiferença do mundo”, como um dia definiu Camus, tomar conta de tudo.

Navalny é um herói moderno. Ele não ficou só no protesto, no YouTube, no ótimo documentário (que, aliás, recomendo) sobre a trama de seu envenenamento, em 2020, pelo serviço secreto russo. Tudo isso era fácil, sob a proteção de uma democracia liberal, na Europa. O duro é pegar um avião e voltar e enfrentar um país onde a lei é relativa. E onde a vida ou a morte depende dos humores de seu maior inimigo, que por acaso está no poder. Por isso minha admiração. Em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith argumentou que nossa empatia é limitada. Que tendemos a nos importar mais com o que está perto, e apenas muito pouco com o que é distante. Se houvesse um terremoto na China, diz ele, faríamos alguns comentários e nos preocuparíamos, mas logo à noite dormiríamos tranquilos. E se no dia seguinte machucássemos um dedo, aquilo nos preocuparia mais do que todos os mortos na China. Algum exagero, aí? Não creio. A exceção é o herói. Aquele que vai na contramão do que diz Adam Smith. Que se preocupa menos com o dedo, o gelo ou a saudade de Yulia, sua mulher, do que com a Rússia e suas liberdades. Seu terremoto. Por que razão? Por que trocar o bem-estar de uma família com dois filhos ainda jovens por uma ideia de “dignidade humana”? (O exato oposto do que fizeram os alemães, no nazismo, na descrição dura de Hannah Arendt.) Confesso que não sei.

O segundo personagem dessa história é Vladimir Putin. “Não fomos nós”, disse ele, quando Navalny foi envenenado, em 2020, “se fôssemos, teríamos acabado com ele”. Navalny é o herói porque segue um mandamento moral; Putin é seu avesso, porque não segue nenhum. É um perfeito homem napoleônico, na definição de um outro russo famoso, Dostoiévski. Quando Raskólnikov, seu personagem central em Crime e Castigo, mata a velha agiota, Alena Ivanovna, em uma madrugada qualquer, em São Petersburgo, ele o faz para roubar. Mas com um detalhe: ele tem uma teoria para justificar o seu crime. A teoria diz que há homens extraordinários, que podem “autorizar a sua consciência” a cometer um crime, por alguma razão. Assassinar sem dó. Sem ficar pensando naquilo, no dia seguinte. Homens como Napoleão, que se não houvesse “nem o Egito”, nem toda a sua trajetória monumental, mas apenas “uma velhota ridícula, uma agiota (…) ele a estrangularia sem pestanejar, sem mais nenhuma reflexão!”. O problema de Raskólnikov é que ele não conseguiu. No dia seguinte aquilo tudo doía. O inferno do remorso e da dúvida sobre o que ele havia feito. E com isso a descoberta de que ele não era um “homem napoleônico” coisa nenhuma, mas apenas um “piolho”. Um tipo comum, dotado de uma maldita consciência moral.

Raskólnikov tinha tudo muito bem elaborado. Os homens extraordinários não têm constrangimentos morais, mas há um limite para o que pode ser feito, pois tudo dependerá de um jogo. Um limite, digamos, maquiavélico. Por vezes terá que se usar a força, e matar, simplesmente, como fez Putin, e em outros momentos será preciso ir com mais calma. Censurar, destruir uma reputação, chamar de “extremista”, recolher o passaporte, deixar preso por um tempo, cortar as contas, humilhar. O homem napoleônico é craque nisso tudo, e sua maior sabedoria, no fundo, é saber lidar com a fraqueza dos outros. A fraqueza, o medo, a adesão, a passividade. É esse o tema de uma das últimas cartas que Navalny escreve a Natan Sharansky, da prisão, dizendo que “não era a KGB que deveríamos culpar, mas a nós mesmos”. Nós que fomos transigindo com toda sorte de “pequenos pecados”, sempre pelas “boas razões”. Nós que achamos que não havia problemas “em manipular um pouco as eleições, influenciar um pouco os tribunais, sufocar um pouco a liberdade de expressão”.

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“Navalny é um herói moderno. Ele não ficou só no protesto, no YouTube”

Quando li isso, Navalny me soou estranhamente próximo, e foi o Brasil que me veio à cabeça. Nosso país no gerúndio e seus pequenos pecados, com os quais vamos aprendendo a conviver. País onde “cada lado tem seus ditadores favoritos”, como me disse uma pesquisadora americana, por estes tempos. O gosto pelos militares dos anos 70, de um lado, e pelas atuais ditaduras latinas, de outro. O país que convive com a penca de jornalistas e ativistas banidos, passaportes retidos, contas bloqueadas. E tudo bem. O pais que recria em larga escala o “delito de opinião”, a censura prévia, prendendo humoristas, censurando empresas digitais pela sua visão sobre um projeto em discussão no Congresso. País dos inquéritos infinitos, onde se investiga qualquer coisa e onde o alvo, o acusador e o juiz se confundem. Onde deputados são banidos, à revelia da Constituição, e pessoas comuns, como o blogueiro Monark, foram punidas por “desconfiar” das urnas eletrônicas. E que agora anuncia um inédito sistema de monitoramento dos brasileiros que “ameaçam a democracia”, na internet. A verdade é que somos aprendizes disso tudo, mas nosso progresso é visível.

Nossa desgraça talvez seja que os homens napoleônicos, em nosso tempo, ao contrário de Raskólnikov, nunca se arrependem. A consciência não lhes pesa. Se o Clezão, nosso “extremista” da Papuda, se foi, que se dane. Se não houve tempo para despachar aquele processo, mesmo com a frase “risco de morte”, alguém perdeu cinco minutos de sono por causa disso? Pergunta inútil. Foi por aí a intuição de Navalny: o problema não está no poder, mas em cada um de nós. Na tal “sociedade” que permitiu que “pequenos pecados” fossem cometidos, um após outro, sempre pelas boas razões. Por isso é que vale ler e reler o grande livro de Dostoiévski. Ele nos lembra que o que nos faz humanos é fundamentalmente a dor que sentimos quando ultrapassamos certos limites. Que ninguém está livre de prestar contas aos outros. E, em especial, a si mesmo. E que somos pessoas perfeitamente comuns, como Raskólnikov em algum momento entendeu, e a partir daí encontrou sua redenção.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881

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