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Hayek em Camboriú

O liberalismo não é apenas um conjunto de regras, mas um modo de viver

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 13 jul 2024, 08h00
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  • “A cidade precisa de uma limpeza espiritual”, diz um ministro do governo, referindo-se ao CPAC, o encontro político conservador, em Camboriú. A postagem veio seguida de uma fila de ofensas, como é típico desses tempos de cólera e má educação, na internet. Lula também lascou: evento “antipovo”, disse ele, entre outras palavrinhas pouco simpáticas. Ele poderia ter dado uma de Obama. Dito “não concordo com aquelas ideias, mas é a democracia, e sou presidente de todos”. Sem chance. O que me chamou atenção foi a presença de Javier Milei, um notório liberal “libertário”, em um evento declaradamente conservador. As razões políticas são um tanto óbvias, mas não é esse meu ponto. O aspecto interessante é conceitual. Qual seria exatamente a diferença entre um liberal e um conservador, na política moderna? Algumas afinidades são velhas conhecidas. A oposição ao socialismo, para começar. E foi exatamente esse o foco do discurso de Milei. Mas há diferenças essenciais, no plano filosófico e em políticas públicas. No governo Bolsonaro, isso apareceu o tempo todo. Qualquer um podia perceber, naqueles anos, a postura de um ministério como o da economia, a abordagem de Paulo Guedes, suas falas sobre as “sociedades abertas”, em contraste com áreas como a da educação, ou mesmo a retórica política mais geral do governo. E presumo que isso será cada vez mais relevante, aqui pelos trópicos, no futuro próximo.

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    Uma referência para tentar entender essas coisas é o texto clássico do economista austríaco Friedrich Hayek, do final dos anos 50, com o sugestivo título Por que Não Sou Conservador. O texto começa com um elogio à tradição conservadora, dado seu apreço pelas instituições e seu gosto pela mudança gradual. Mas se afasta dessa mesma tradição, associando a posição liberal a um saudável ceticismo e ao gosto pela mudança produzida pela lógica espontânea a autorreguladora do mercado. O ponto que sempre me chamou atenção surge quando ele diz que um conservador não dispõe de princípios que lhe permitam “trabalhar com pessoas cujos valores são diferentes de seus próprios valores, de modo a estabelecer uma ordem política na qual ambos possam seguir suas convicções”. O ponto de Hayek é dizer que o conservadorismo é um elefante na loja de cristais, em uma sociedade aberta. Não sabe lidar com “fato do pluralismo”, definidor do mundo moderno. Há algum eco distante sobre isso, naquele evento, em Camboriú? O conservadorismo dominante, ali, por óbvio, não era o de Edmund Burke, que teria agradado a Hayek, mas algo mais caseiro. Algo que se convencionou chamar de “conservadorismo de costumes”. Visão com conotação religiosa, expressa no bordão de Bolsonaro: “Deus, pátria e família”. Do outro lado, Milei, o roqueiro libertário. Ele e sua visão agnóstica da política, cuja prioridade é a neutralidade do Estado diante de diferentes visões éticas, e a contínua expansão dos limites da liberdade individual.

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    Cá entre nós, não é uma diferença pequena. Ela pode surgir em infinitos espaços. Na educação, por exemplo. Ainda por agora, o estado de Okla­ho­ma mandou que os professores ensinem sobre a Bíblia, nas escolas públicas. Concordamos com isso? Ou o foco deve se concentrar na abordagem laica e pluralista da educação, favorecendo a “descoberta”, por parte dos alunos, e sua autonomia intelectual? Nesse prisma, por curioso que possa parecer, conservadores de costumes e a esquerda de simpatias woke se aproximam. Ambos têm uma doutrina moral a seguir. Essa proximidade, aliás, não passou desapercebida para Hayek, dizendo que seria “mais fácil para o socialista arrependido encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os liberais”.

    Muita gente vê nessa ausência ou recusa de uma régua abrangente de valores uma enorme fragilidade da tradição liberal. O liberalismo seria basicamente insosso e carente de imaginação. Incapaz de dar qualquer resposta relevante sobre os temas essenciais da existência humana. Por que alguém sairia à rua para defender coisas aborrecidas como “um Estado neutro, garantias individuais e isonomia diante da lei”? Só mesmo malucos que gostam da Primeira Emenda, da liberdade de expressão, direitos individuais, essas coisas (entre os quais me incluo). Mas, cá entre nós, são a minoria da minoria. A partir daí, surge a crítica à esquerda e à direita. De um lado, a fragilidade liberal tornaria a sociedade presa fácil do discurso woke, e similares; de outro, o vazio seria preenchido pelos novos populismos conservadores, ao estilo Trump, Le Pen, Orbán e cia. Ali pelo meio desses dois rochedos, o liberalismo andaria como marisco. Frágil para manter coesa uma sociedade em tempos duros.

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    “O liberalismo não é apenas um conjunto de regras, mas um modo de viver”

    Quem propôs uma via alternativa foi o professor da Universidade de Sydney Alexandre Lefebvre, com seu livro O Liberalismo Como Estilo de Vida. Lefebvre defende o seguinte: o liberalismo não é apenas um conjunto de regras e instituições, mas um modo de viver. Ele não demandaria nenhuma doutrina abrangente, seja religiosa, seja política, para dar conta de nossas justificações existenciais. Ele mesmo nos ensina uma boa forma de viver. Suave, tolerante, ciosa da liberdade pessoal, capaz de rir de si mesmo e dos outros. E ainda cultivar um ativo senso de comunidade. A definição é otimista. O tipo liberal não recusaria a religião, por princípio. Apenas não dependeria dela como fundamento de uma vida ética. E por nada deste mundo se fixaria em alguma religião política, que nos inferniza, por aí. Lendo o professor Lefebvre, me lembrei de Nietzsche e seu “último homem”. Aquela cena do profeta Zaratustra, diante da multidão, anunciando a chegada do über­mensch (por vezes traduzido como “super-­homem”), enquanto a multidão queria mesmo saber de um tipo humano menos complicado. O tipo que deseja viver muito, cuidar da saúde e buscar a felicidade. Confesso que sempre achei o “último homem” um bom modelo. Desencanado, sem pretensões de redefinir a cultura e outras grandiloquências nietzschianas. Sem a mania woke ou “conservadora” de regular a vida dos outros. Daí, quem sabe, a ênfase que Lefebvre dá à cultura pop, ao humor, a uma certa desconfiança em relação a muita conversa metafísica. Quem sabe seja esse nosso futuro, profetizado por Nietzsche.

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    Havia ainda uma terceira posição, perfeitamente compatível com a visão liberal, presente em Camboriú: a do governador Tarcísio de Freitas. É a posição que fica com um pouco de sono com muita discurseira ideológica, e cuja ênfase é a modernização do Estado e do mercado. É possível que seja a posição típica do político de uma democracia avançada, na qual muitas das grandes questões já estão resolvidas, e a quem governa cabe resolver problemas e agir com eficiência. Não parece bem ser o caso do Brasil. Mas está lá. Em um grupo restrito, escutei chamarem o Tarcísio de “neotucano”. Faz sentido. Por muito tempo, a visão liberal, no Brasil, se confundiu com as agendas de modernização do Estado, típicas da era FHC. Mas é possível que o Brasil de hoje exija um pouco mais do que isso. Cada um pode julgar.

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    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901

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