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Complacência

Vai aí o pêndulo brasileiro. Podemos até acenar em uma direção modernizadora, como se fez com o breve ciclo recente de reformas. Mas logo recuamos

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 15 abr 2023, 08h00

O Brasil anda em um ciclo de contrarreformas? Veja-se o tema do marco do saneamento. Com 94% das cidades atendidas por empresas estatais, o país chegou a 2020 com quase metade da população sem acesso ao saneamento. As razões são conhecidas. Falta de capacidade de investimento, ausência de competição, mandonismo político. Tudo exaustivamente discutido, três anos atrás, quando o novo marco do saneamento foi aprovado, abrindo espaço ao investimento privado. Quando se achava que esse assunto era página virada e os leilões aceleravam seu ritmo, resolvemos recuar. O governo alterou as regras do jogo, permitindo novamente contratos sem concorrência com os municípios, flexibilizando exigências que dão uma sobrevida às empresas estatais. Não são apenas decisões técnicas. Elas revelam traços definidores de nossos hábitos políticos, aos quais vale a pena prestar atenção.

Em primeiro lugar, o experimentalismo. O que já chamei aqui de “país do zigue-zague”. O Congresso aprovou uma regra de mercado que por óbvio tirou muita gente da zona de conforto. Era o caso de seguir em frente, fazer valer a previsibilidade jurídica, ou recuar, diante das pressões de sempre? Vai aí o próximo pecado: a falta de equidade. Atendendo aos governos e empresas que não fizeram o dever de casa, o governo desconsiderou a maioria que trabalhou duro para se ajustar às mudanças. Foi assim com o Fies, no governo passado. Perdoando a dívida de quem não pagou, sem critério, fez troça de quem cumpriu com suas obrigações, além de desacreditar as ações do governo. Por fim, a fragilidade do Estado diante do lobby corporativo. Era evidente que as empresas estatais teriam de se ajustar, sob pena de perder contratos. E que muitos estados deveriam acelerar os processos de privatização. O ponto é que era mais fácil ir a Brasília e apostar em uma solução política, retornando ao antigo status quo. Nossa velha e conhecida complacência. O tema foi objeto de um ótimo livro de Fábio Giambiagi e Alexandre Schwartsman sobre as reformas que deveríamos ter feito e não fizemos justamente pela “atitude de adiar decisões difíceis, evitar conflitos, acreditar que os problemas não são tão sérios quanto parecem”. Os problemas estão aí, mas a verdade é que sempre possível, e a curto prazo mais barato, ir empurrando com a barriga. Lula traduziu isso em seu discurso dizendo que era para “dar mais uma chance” às velhas estatais. E que “se isso aqui não der certo, não tem culpado”. Ele tem razão. Conhece o Brasil. Tem perfeita noção do tamanho de nossa memória.

A complacência é o secreto vício de nosso mundo político. E não é de hoje. Exemplo disso é a educação pública. A cada três anos, nosso ensino estatal tira as últimas posições no Pisa, mas ficamos no lero-lero. Há três anos, o Congresso chegou a aprovar a possibilidade de que 10% dos recursos do Fundeb pudessem ser usados para parcerias com o setor privado sem fins lucrativos, o que permitiria que milhares de alunos estudassem em escolas filantrópicas e confessionais, como em regra fazem seus pares da classe média. Mas não teve jeito. Um gigantesco lobby se formou no Congresso, liderado por ONGs empresariais e sindicatos, para impedir aquela pequena mudança. De quebra, ainda conseguiram emplacar um aumento de 60% para 70% dos recursos do fundo destinado ao funcionalismo público. Nenhum estudo técnico, nenhuma vinculação entre ganhos e resultados. E o mantra discreto, que nem precisa ser dito: “Se não der certo, não tem culpado”.

“O Brasil não gosta de capitalismo”, disse FHC há vinte anos

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De onde vem nossa fragilidade? De nosso desenho institucional? Da cultura política de nossas elites? Ou vem da sociedade, cujas preferências são devidamente refletidas e ordenadas no mundo político? Essa última hipótese parece ser a opção de Pedro Malan, em um artigo elegante que leio esta semana. O país viveria uma espécie de paradoxo, dado pela “irrefreável tendência da sociedade de reivindicar, ao mesmo tempo, impostos baixos e governo grande”. Gentilmente, discordo dessa visão. Vejo apenas como mito a ideia de uma vontade da sociedade conduzindo decisões no jogo opaco de poder em Brasília. Não há hoje demanda social alguma por “mais Estado”, como não havia, há quatro anos, por “menos Estado” e privatizações, quando já se sabia que Paulo Guedes seria o superministro da Economia. Ao contrário do que as pessoas costumam imaginar, não são as maiorias, em regra dispersas e silenciosas, que dão as cartas na democracia, mas as minorias organizadas. Isso é especialmente válido em um país desigual como o Brasil, com seus treze estados com mais pessoas no Bolsa Família do que com carteira assinada.

Nosso trinômio pobreza, dependência e desigualdade torna a sociedade cronicamente frágil diante do Estado, oferecendo ampla margem de manobra e quase nenhuma responsabilização ao sistema político na tomada de decisões. Não foi a sociedade que mandou engavetar a reforma administrativa, enterrar a PEC dos penduricalhos, dar um aumento sem lastro fiscal ao funcionalismo, e ainda aumentar o teto salarial do setor público em 18%. É aí que reside o aspecto perverso de nossa “brasilidade”, na boa expressão de Pedro Malan. Na epiderme, ela diz respeito a nosso gosto retórico, à falta do “wish is not a policy”, do pragmatismo anglo-saxônico. Um pouco abaixo da pele, porém, emerge um sentido de ordem, que é dado pela lógica da captura. De nossa reincidência que o professor Edson Nunes chamou de “gramática clientelista”, em oposição ao “universalismo de procedimentos”. O clientelismo que “se manteve forte no decorrer de períodos democráticos não definhou durante o autoritarismo, não foi extinto pela industrialização e não mostrou sinais de fraqueza com a abertura política”.

Vai aí o pêndulo brasileiro. Podemos até acenar em uma direção modernizadora, como se fez com a lei das estatais, a autonomia do Banco Central e o breve ciclo recente de reformas. Mas logo recuamos. A força gravitacional da lógica da captura faz sentir sua força. Não depende de um ou outro partido, e o mesmo Congresso que vota um teto rigoroso do gasto público, vota depois uma regra frouxa, na direção oposta. Faz lembrar das palavras de FHC a Armínio Fraga, pouco antes de sua sabatina para o Banco Central, no Congresso, vinte e tantos anos atrás. “O Brasil não gosta do capitalismo. Os congressistas não gostam, os jornalistas não gostam, os universitários não gostam. Gostam do Estado, da intervenção, do controle.” Foram duras as palavras de FHC. É apenas uma parte do país que pensa assim. Mas é uma parte relevante, que tem força, que sabe ganhar o jogo, e da qual estamos tendo notícia, em nossa pujante democracia, por estes dias.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837

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