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Fernando Schüler

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A sátira dos contribuintes

Não houve nenhuma conspiração. Houve um flash mob digital

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 27 jul 2024, 08h00

O Ministro Haddad reagiu bem à enxurrada de memes sobre o “taxad” e os aumentos de impostos. Ficou em silêncio e tocou seu trabalho. Com humor não tem jeito. É assim que tem que fazer. E arrisco: é assim que o poder deve funcionar. O completo ridículo ficou por conta de uma parte da mídia mais governista do que o próprio governo. O “tinha que proibir”, a conversa sobre “é coisa de profissionais”, e frases do tipo. Por um momento até me peguei pensando: como é que iriam proibir memes na internet? Podia entrar no PL das Fake News. Quem sabe equiparar memes a fake news ou “ameaças à democracia”. Ou algo nessa linha. Não ia dar certo. Iria logo aparecer alguém com aquela perguntinha chata: mas só os memes contra o governo? Esquece. Zero chance de isso funcionar.

De minha parte, achei interessante a onda dos memes. Não tem nem de longe a qualidade das caricaturas e ilustrações que um Angelo Agostini fazia satirizando nosso bom imperador, mas de alguma forma funciona. Quem não entender esse traço anárquico e algo grosseiro das redes não entendeu nada sobre a democracia atual. Dito isso, impressionam as reações. De um comentarista, escutei que tudo não passava de um “ataque da direita”. De outro, que se tratava de uma “ação preventiva de grupos privilegiados (da Faria Lima, claro) com medo da reforma do imposto de renda”. Tentei imaginar a turma bacana da Faria Lima dizendo “vai ter reforma do IR ano que vem, vamos fazer uns memes para ir já esculhambando tudo”. Ótima explicação. A crítica mais brilhante que li dizia que a sátira “traduzia a cultura neoliberal” de que é “ruim pagar impostos”.

Achei aquilo curioso. O Brasil é um país de cultura patrimonialista. Há mais gente contra (45%) do que a favor (38%) a processos de privatizações por aqui. Partidos pró-livre mercado nunca fizeram muito sucesso eleitoral, e nada indica que tenhamos algo como uma “cultura neoliberal”. O melhor é cair na real: não há nada de muito profissional na sátira à mania arrecadatória do governo, e muito menos nenhum tipo de conspiração. Houve um “flash mob digital”. Uma onda provocada pelo fato simples de que o governo, desde que tomou posse, não parou de inventar maneiras de aumentar a arrecadação. Ponto. A lista é grande e conhecida. Taxação dos combustíveis, nova regra de tributação dos incentivos do ICMS, mudança da regra do Carf, taxação das apostas esportivas, dos fundos exclusivos, compras internacionais e parcelamentos dos créditos tributários, entre muitas invencionices. Em algum momento, houve um esgotamento dessa estratégia. O ponto de virada foi a derrota da tentativa de reoneração da folha de pagamentos das empresas e a devolução de uma MP restringindo as compensações de créditos de PIS e Cofins. Muitas dessas medidas são justificáveis. Outras, nem tanto. No conjunto da obra, o que surge é a imagem de um país burocrático e sem originalidade.

Dias atrás li um artigo de uma especialista tributária dizendo que ninguém gostava de pagar imposto. Discordo. O que ninguém gosta é de bancar o trouxa. Isso acontece em três situações: quando o imposto é alto, quando ele paga e os outros não (ou pagam muito menos) e quando o dinheiro que ele paga tem pouco retorno. O Brasil é uma mistura dessas três coisas. A começar pelo tamanho da carga tributária, 33%, a maior do continente. Só isso já seria motivo para coisas bem menos engraçadas do que memes. Mas não fica por isso. Poderíamos ter uma carga alta com um ótimo retorno. Não é o caso. Pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação mostrou que temos a pior entrega em termos de desenvolvimento humano entre trinta das economias que mais tributam, no plano global. Nossa taxa de investimento é pífia e nossa educação pública pontua nas últimas posições do Pisa, a cada três anos. O problema se complica quando aproximamos a lente e observamos para onde vai o dinheiro público. Por que cargas-d’água um país endividado e deficitário, como o Brasil, tem o Legislativo mais caro do planeta, com um custo de 528 vezes a renda média da população? E por que somos o país que mais aporta dinheiro do contribuinte para financiar partidos políticos e candidatos? Sejamos honestos: dinheiro não é o nosso problema. O CLP fez uma pesquisa mostrando que há mais de 20 000 funcionários ganhando acima do teto, no país. Perto de 93% de nossos magistrados estão nessa situação. É evidente que não é fácil lidar com isso. Em uma ida ao Congresso, a ministra Simone Tebet disse que é “mais fácil aumentar a arrecadação do que cortar gastos”. É um belo resumo do nosso problema. Apenas com um detalhe: nossos dirigentes são pagos para fazer o que é difícil, não o que é fácil. Há uma PEC no Congresso, a chamada “PEC dos penduricalhos”, cujo foco é exatamente cortar privilégios e fazer valer o teto dos servidores. Por que isso não anda? Por que é difícil? Fácil é passar a conta para quem tem menos poder de lobby em Brasília?

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“Não houve nenhuma conspiração. Houve um flash mob digital”

Reformas são difíceis em razão de um dilema há muito conhecido na política. Ele foi formulado por Maquiavel, em O Príncipe. Sua lógica é bastante clara: reformas são difíceis porque todos os que perdem, com a nova ordem, se tornarão inimigos duros do reformador. E todos os que ganham, em regra de maneira difusa e ao longo do tempo, darão a ele quando muito um apoio bastante moderado. Não sei se Tebet leu Maquiavel, mas foi isso que ela acabou dizendo. A lógica de Maquiavel permanece intacta. Uma reforma administrativa que cortasse privilégios, como licenças-prêmio, auxílios-moradia para quem não precisa, férias de dois meses, 25 assessores por deputado, jatinhos para ir e vir nos fins de semana e colocasse para funcionar a avaliação dos servidores, como manda a Constituição, cumpriria todos os requisitos de Maquiavel: ela seria ótima para o país. Ótima para o cidadão que paga impostos. Mas seria péssima para quem dispõe de todas essas vantagens. Se o governo colocasse algo assim para votar, no Congresso, quem lotaria as galerias e capricharia no lobby: o cidadão, que vai pagar menos e ter um serviço melhor? Ou a corporação, que terá de se enquadrar no teto e perder seus penduricalhos?

É por essas coisas que sempre escrevo da minha admiração por quem empreendeu reformas realmente importantes na história brasileira recente. Quem desenhou a reforma do Estado, nos anos 90, quem fez a reforma trabalhista, em 2017, a reforma da Previdência, em 2019, e emplacou a autonomia do Banco Central, três anos atrás. Essas pessoas mostraram que o Brasil não é apenas um país condenado a fazer apenas o que é fácil. E no fundo é sobre isso o recado dos memes. E é por isso que eles não devem ser proibidos. Eles são apenas parte do jogo da democracia. Não acho que o governo mudará seu rumo por causa disso. Mas muita gente, inclusive do próprio governo, talvez se dê conta de que não mudar pode sair bastante caro, logo ali à frente.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903

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