A política como espetáculo
É um erro pensar que a maioria da sociedade esteja satisfeita com o padrão circense do debate. A minoria barulhenta dá o tom da orquestra desafinada
Observava pela televisão aquele tanque com a fumacinha cruzando a manhã cinzenta de Brasília, à frente do Palácio. “Mais um passo na escalada golpista em curso no país”, dizia a manchete de um prestigiado veículo de imprensa. O senador Omar Aziz classificou a cena como um “ataque frontal à democracia”. No alto da rampa presidencial, alguns militares assistiam àquilo com ar de tédio. Ao menos foi tudo muito rápido. Mal deu tempo para as crianças levadas pelos pais para ver o desfile chegarem um pouco mais perto daquelas geringonças.
Daqui a pouco, como de hábito, quase ninguém vai se lembrar disso. Apenas mais um episódio do debate polarizado e algo doentio do Brasil atual. Debate pautado por duas premissas tóxicas. Uma delas (hoje minoritária) é a de Bolsonaro como herói antissistema. E que tudo o que vier dele deve ser defendido, sob pena de traição; a segunda (hoje majoritária) diz o contrário. Bolsonaro é um tipo maligno, representa a mais pura barbárie, e tudo o que vier dele deve ser combatido, custe o que custar. Duas premissas de traço religioso bloqueando qualquer chance de um debate racional sobre os problemas do país.
Exemplo disso foi a querela em torno do voto impresso. Para alguns, ele assumiu uma espécie de “função cloroquina”. Uma quantidade não desprezível de pessoas realmente acreditou que havia um quartinho secreto, no TSE, onde alguns ministros digitariam um código secreto e dariam um jeito nas eleições. De outro lado, outro grupo de pessoas acreditando que defender a urna eletrônica era “defender a própria democracia”, como ouvi de um bom amigo jornalista.
O que surpreende, nesse debate, é a mistura de barulho com inocuidade. Em parte, é um traço do Brasil nos últimos anos. O país atravessa uma escalada de radicalização ao menos desde 2013. Bolsonaro, ele mesmo um exímio produtor de toxina política, é consequência disso. O problema, no entanto, está longe de ser apenas brasileiro. É algo que diz respeito às grandes democracias nesta era da política como espetáculo.
David Brooks tratou do tema em um artigo recente, propondo uma distinção entre a política do circo e a política do compromisso. A primeira é barulhenta, usa termos fortes e trata sempre dos temas (como se diz nas redações) que estão bombando. Sua medida de sucesso é feita de likes, views e coisas do tipo; a segunda é feita dos temas monótonos da política. Os temas complexos, de política econômica e reformas, que repercutem menos, mas no fundo são os mais importantes na vida das pessoas. Seu protagonista típico é o político moderado. Sua medida de sucesso, o resultado, em regra feito de concessões, como é próprio das democracias.
A distinção é crucial. É como se tivéssemos um lado negativo e um lado positivo na democracia. Isso é perfeitamente nítido no Brasil recente. De um lado, a eterna conversa sobre o “golpe”, o “fechamento do Supremo”, as centenas de declarações, tuítes, denúncias, ameaças e abundância retórica que marca o cotidiano triste dos jornais e da internet. Tudo o que produz a sensação de que andamos à beira do abismo. De outro, o país que aprovou as reformas trabalhista e previdenciária, e coisas inteiramente sem graça, como o novo marco do saneamento e a autonomia do Banco Central.
“O Brasil precisa de ‘um novo jeito de caminhar’, como dizia Weffort”
Simon Bazelon e Matthew Yglesias foram nessa linha com sua tese do “Congresso secreto”. Um pouco abaixo da gritaria política, dizem eles, há gente, de diferentes lados da política, tocando à frente pautas importantes. Eles propuseram um axioma: quanto mais longe da “saliência pública”, maior a probabilidade de alguma coisa avançar positivamente no mundo político. “A atenção do público cria incentivos perversos”, dizem, mencionando pesquisas que mostram o efeito contraproducente que tem o envolvimento exacerbado do presidente em um assunto no Congresso. Não é por acaso que o voto impresso tenha feito, depois de toda guerra movida por Bolsonaro, perto da metade dos votos que fez, anos atrás, em um Congresso muito parecido com este.
A política passou a funcionar, em larga escala, na lógica do que Mario Vargas Llosa definiu como a “civilização do espetáculo”. Civilização marcada pela “banalização da cultura, pela frivolidade e, no campo da informação, pelo jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo”. Diagnóstico duro e verdadeiro. O líder populista é alguém que sabe lidar com esse universo. Ele inflama, divide, mobiliza. Mas é incapaz de lidar com a política do compromisso, essencial para fazer a democracia funcionar. Daí a permanente sedução do autoritarismo. Em democracias fortes, como a brasileira, resta a bravata. A retórica de um lado; os arranjos políticos tradicionais, no Congresso, do outro.
É um erro pensar que a maioria da sociedade esteja satisfeita com o padrão circense do debate político. Pesquisas mostram que logo abaixo da camada radicalizada da cena pública, dominada pelos ativistas digitais, há uma imensa legião de cidadãos aberta a consensos e simpática a uma política de resultados. O ponto é que se trata de uma maioria silenciosa. A minoria barulhenta dá o tom da orquestra desafinada. Seu representante típico é o sujeito que reclama do ódio exalando ódio. O tipo incapaz de reconhecer em si todos os defeitos que vê nos outros. Sua maior marca é reclamar do “caos”, ainda que pareça encontrar nele sua secreta alegria.
Brooks termina seu artigo com uma nota de otimismo. “Os moderados”, diz ele, “estão de novo em boa forma.” A razão disso é Joe Biden. Um tipo que não quer derrubar o sistema, mas “acredita que ele possa funcionar”. Biden vai, diz ele, gradativamente ampliando o espaço que separa decisões de governo da lógica estéril da guerra cultural.
Há quem diga que isso é ruim. Que a moderação, na política, é sinônimo da acomodação de interesses e tolerância ao status quo. E que seria preciso passar a faca, cortar o mal pela raiz. Acho que já ouvimos essa fraseologia por aí, não? Tenho uma vaga memória da vassoura do Jânio, da “bala de prata” de Collor, do “nunca antes neste país” e, mais recentemente, do outsider providencial que iria derrubar o “mecanismo”.
O que o país precisa, quem sabe, é buscar um “novo jeito de caminhar”, como dizia o professor Francisco Weffort, que nos deixou por estes dias. Nem o status quo nem o radicalismo vazio. Se cada um fizer sua parte, recusando a política do circo e dando um cartão vermelho a quem vive dela, seja de que lado for, quem sabe tenhamos a chance de evitar velhos equívocos e andar à frente.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751