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A armadilha Argentina

A disputa é menos sobre 'esquerda x direita' e mais sobre 'estatismo e liberalismo'

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 28 out 2023, 08h00

Poucas vezes se viu uma eleição opondo candidaturas tão claramente distintas, como agora na Argentina. E não é porque Javier Milei parece um velho roqueiro, e Sergio Massa, um cantor de tango, um “milongueiro”, como me definiu um colega argentino, na outra semana. O ponto é que Massa expressa a quintessência do status quo da política argentina. O homem da “casta”. Exímio articulador, Presidente da Câmara, chefe de gabinete do governo Kirchner, Ministro da Economia e agora a nova cara do peronismo, “essa força política da qual já se escreveram muitos epitáfios e lápides, mas que é um magma sempre latente”, na boa definição de Luis Tonelli, na Universidade de Buenos Aires.

Javier Milei, por sua vez, é a mais perfeita materialização do improvável. O avesso da tradição argentina recente. O tipo que sugere vender as Aerolineas Argentinas e terminar com o peso e sua nota com o rosto de Evita. Ele diz resgatar a tradição de Juan Bautista Alberdi, que fixou as bases do liberalismo argentino, no século XIX, e deu o nome de Milton (Friedman), Robert (Nozick) e outros a seus cachorros. O ponto é que sua visão de mundo é amplamente minoritária nos “meios de opinião” do país. Na mídia, na academia, no colunismo político. Isso explica, em boa medida, como os polos foram se invertendo, ao longo da campanha. O que parecia absurdo, isto é, a continuidade de um governo que conduziu a Argentina ao mais evidente desastre econômico, foi se convertendo, ao longo da campanha, na “saída responsável”. E o que era a mudança foi se tornando o “grande perigo”. Em uma esquisitíssima coletiva de imprensa com Massa, no dia seguinte à eleição, ninguém se lembrou de lhe perguntar como ele havia levado o país, durante sua gestão, de 60% para 140% de inflação. Ou como o país chegou a 40% de pobreza. O clima era de festa, sua gestão era um estranho sucesso, e não faltaram as palmas, ao final. E era uma reunião com jornalistas, não um ato de campanha. Coisa que, por um momento, tive dificuldades de distinguir.

A lógica da conversão de Milei no grande espantalho é conhecida. Ele é um “perigo à democracia”, estampava o jornal esquerdista Página 12, às vésperas das eleições. No The Guardian ele aparece como um “populista de extrema direita” e o “novo Trump”. De um jornalista brasileiro leio uma convocação para uma união entre Massa e Macri, para salvar a Argentina do bicho-papão. Não vai acontecer, mas não deixa de ser engraçado. Milei é um tipo difícil de definir, pois junta duas coisas improváveis: liberal na economia e liberal nos costumes. Seu foco é a economia. Ele propõe focalizar transferências sociais na demanda, e não na oferta. Dar um voucher para as famílias escolherem a escola, como foi feito no Chile ou na Suécia. E no Brasil, com o ProUni, e nunca escutei ninguém falar que seria uma ideia de “direita”. Ainda na noite de domingo, Milei repetiu que seu foco era “eliminar privilégios, não direitos”. A disputa, hoje, na Argentina, é menos sobre “esquerda x direita” e mais sobre “estatismo e liberalismo”. Algum paralelo poderia ser feito com a candidatura de Vargas Llosa contra Fujimori, no Peru de 1990. Vamos lembrar que Llosa também foi acusado de querer desmantelar o Estado peruano, fez alianças improváveis, e recebeu o apoio da Igreja, sendo ele um ateu. E no final perdeu. E até hoje muita gente lamenta, nas noites quentes de Lima ou Arequipa, aquela chance que o Peru deixou passar.

“A disputa é menos sobre “esquerda x direita” e mais sobre “estatismo e liberalismo”

A vitória de Sergio Massa não é propriamente difícil de entender. O peronismo é uma força histórica e usou e abusou da força do governo nas eleições. A oposição veio dividida, e Massa acertou o tom da campanha, jogando com o medo, e produzindo o milagre de se descolar da imagem de Alberto Fernandes e de seu próprio governo. Mas há um fator estrutural, de longe o mais importante: a Argentina criou uma armadilha para si mesma. “Entre 2002 e 2023”, observa o economista Gustavo Segré, “foi de 2 milhões para cerca de 25 milhões (mais de metade da população) o número de pessoas que recebem alguma transferência direta ou subvenção do governo”. Boa parte delas beneficia indistintamente os setores de menor ou maior renda. A jornalista Paula Urien diz que o país vive em uma “síndrome de Estocolmo”. “A pobreza”, diz ela, “faz com que as pessoas dependam do Estado, que não gera as condições de crescimento, mas fornece o mínimo para sobreviver”. O exemplo recente disso foi o “plano platita”, um incrível programa de distribuição de dinheiro para desempregados, aposentados, trabalhadores domésticos, além de isenções tributárias, lançado pelo próprio Massa, a poucas semanas das eleições. Ao custo de 1,3% do PIB. Talvez não exista outro lugar em que se executou tão bem a ideia de tornar as pessoas dependentes do Estado. De um velho taxista escutei que “era evidente”, que queria mudar. “Mas e os preços, como ficam?”. Massa e o governo batem o tempo todo na tecla de quanto custaria o transporte, a luz, o gás e tudo o mais se os subsídios fossem retirados. A mensagem é clara: a alternativa liberal pode até ser o “caminho da prosperidade”, como escutei de um tipo mais empolgado, em algum lugar na Recoleta, mas há custos no curto prazo, e uma transição dura à frente.

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Há uma dura lição no caso argentino: um país que leva a sério a frase famosa de Evita, segundo a qual “onde há uma necessidade, há um direito”, pode terminar, no final, com necessidades de mais e direitos de menos. É possível que Milei tenha falhado, ao menos até aqui, em explicar qual é exatamente a diferença entre direitos e privilégios, e como fará uma transição civilizada a uma sociedade liberal e de mercado. Como irá “desarmar a bomba”, como escutei muitas vezes, por estes dias, sem que as pessoas voem pelos ares junto com os edifícios que ele mostra sendo implodidos em sua campanha. De todo modo, vale que estas lições sejam aprendidas também aqui no Brasil: a cada nova bondade pública, seja para comprar carros zero, isentar pessoas e empresas de suas obrigações ou colocar mais e mais pessoas na dependência do Estado, e a cada vez que nos lixamos para coisas como reformas, regras de mercado, déficit e controle do gasto público, estamos seguindo um caminho perigoso. Pensava sobre isto em uma noite dessas, passando em frente ao velho Colón, sob cujas marquises um morador de rua se instalava para dormir. Até o dia seguinte, com sorte, ele teria alguma tranquilidade. O que não deixava de ser uma boa imagem para todo aquele imenso e belíssimo país, à sua volta.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865

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