Atualizado às 18h30.
Enquanto Ricardo Lewandowski se blinda caladinho, seus auxiliares no processo de impeachment Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho e Fabiane Pereira Duarte ficaram encarregados de reinventar a língua portuguesa e distorcer em entrevista a Monica Waldvogel na Globonews o artigo 52 da Constituição e a Lei 1.079 para justificar as manobras ilegais do presidente do Supremo Tribunal Federal na sessão final do julgamento de Dilma Rousseff.
É muito mais fácil, claro, já que teriam no máximo contribuído com o golpe, mas não são seus responsáveis diretos.
Luiz Fernando é secretário-geral da presidência do Senado, braço-direito de Renan Calheiros, que o emprestou para assessorar Lewandowski no processo, tendo aparentemente os dois ou os três articulado a manutenção da habilitação de Dilma para ocupar cargos públicos.
Fabiane é secretária-geral da presidência do STF e se disse fã do chefinho:
“E o Brasil conseguiu ver quem ele é”, afirmou. Verdade. Um transgressor da Constituição em favor do PT.
I. As alegações
Após Fabiane dizer que o fatiamento é uma questão controversa, mas que considera haver mais elementos a seu favor do que contra, as duas principais alegações foram as seguintes:
1) Segundo Luiz Fernando, o termo “limitando-se” no artigo 52 pode ser interpretado como uma referência ao limite máximo da condenação, e não a uma determinação específica da pena, que portanto poderia ser definida no Senado.
Transcrevo novamente o artigo 52:
“Nos casos previstos nos incisos I (processo contra presidente da República por crimes de responsabilidade) e II (processo contra STF), funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”
Ou seja: “limitando-se a condenação”, sem crase, significa que a condenação está limitada “à perda do cargo, COM inabilitação”. O legislador em momento nenhum escreveu a palavra “máximo”, muito menos “mínimo”, de modo que, não havendo gradação prevista, o sentido patente da referida limitação é o de que não pode haver outras penas para além daquelas especificadas e determinadas pela literalidade da norma. Só haveria alguma margem para discussão quanto a estas se fossem usados “e”, “ou”, “e/ou”, mas a preposição “com” deixa explícita a aplicação conjunta das penas previstas. (* Atualização de 18h30: este parágrafo foi reformulado pelo blog, sendo esta a sua versão definitiva, sem qualquer prejuízo da conclusão original da publicação de 15h. Havia apenas uma confusão já desfeita sobre o lugar da crase no texto constitucional. De um jeito ou de outro, nota-se, a alegação é absurda.)
Se assim não fosse, a frase teria de ser muito mais clara e longa, como por exemplo: “funcionará como Presidente o do STF, que poderá determinar a condenação à perda do cargo, ou à inabilitação por prazo a ser estipulado, ou a ambas, respeitando o limite máximo de condenação à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos…”.
Tirar da frase original esta interpretação, em lugar daquela evidente, é um tremendo exercício de contorcionismo verbal e jurídico, que ainda se volta contra a própria formulação da pergunta sobre a condenação de Dilma.
Uma vez assumido que a pena referida no artigo 52 é apenas o limite máximo possível, então o prazo apontado na pergunta era passível de discussão no Senado e não devia ter sido estabelecido diretamente como “oito anos”.
Ademais, todos esses contorcionismos vão contra a decisão sobre o Mandado de Segurança impetrado há 24 anos por Fernando Collor de Mello, ex-presidente então condenado à pena dupla.
“Não é possível a aplicação da pena de perda do cargo, apenas, nem a pena de inabilitação assume caráter de acessoriedade”, ficou decidido na época.
Até o parecer da PGR na ocasião ressaltava isto, reforçando a argumentação do então relator Carlos Velloso sobre a preposição “com” indicar necessariamente a aplicação conjunta.
Lewnadowski e sua trupe se aproveitam dos fatos de que decisão sobre MS não tem força vinculante de lei, e de que aquela ainda foi desempatada por ministros do STJ (como se isto a tornasse menos válida), para legitimar decisão contrária que, grosseiramente, faz de Collor um ex-presidente injustiçado.
2) Fabiane justificou a decisão pelo fatiamento da votação citando o parágrafo único do artigo 68 da Lei 1.079.
Este blog já analisou a distorção deste e de outros artigos da lei do impeachment no post “Lewandowski 2015 x 2016“, do qual segue em azul o respectivo trecho:
Art. 2º da Lei 1.079: “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.”
Ou seja: a própria lei do impeachment fala “da pena de perda do cargo, com inabilitação”, de modo similar ao artigo 52 da CF. A palavra “pena” na lei acima ainda aparece no singular, tornando impossível a interpretação de que uma pena pode ser separada da outra. Os demais artigos só confirmam esta tese.
Além disso, o prazo estipulado na Lei 1.079 é de “até cinco anos”, não de “oito anos”, como manda o artigo 52 da Constituição e como foi usado na pergunta feita sobre Dilma. (…)
Art. 33 da Lei 1.079: “No caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.”
Ou seja: o Senado “fixará O PRAZO de inabilitação”. Repito: o prazo.
Isto significa que Lewandowski não ignora apenas o texto constitucional. Ignora também, dentro de sua lógica inconstitucional, a própria Lei 1.079, porque a inabilitação é decorrência inseparável da condenação e caberia ao Senado apenas estabelecer por quanto tempo o presidente ficaria inabilitado.
O artigo 68, que legitimaria a realização de duas consultas ao plenário, torna isto ainda mais evidente.
Art. 68. O julgamento será feito, em votação nominal pêlos senadores desimpedidos que responderão “sim” ou “não” à seguinte pergunta enunciada pelo Presidente: “Cometeu o acusado F. o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?”
Parágrafo único. Se a resposta afirmativa obtiver, pelo menos, dois terços dos votos dos senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública.
A consulta, portanto, é sobre “O TEMPO” da não habilitação, não sobre se o condenado deve ou não ficar inabilitado, já que ele “deverá ficar inabilitado”, como diz o texto literalmente.
Não havendo prazo mínimo determinado na Lei 1.079, mas apenas o prazo máximo (“não excedente de cinco anos”), o Senado – caso se baseasse realmente nela – deveria ter debatido em plenário qual seria a forma de decidir o tempo da inabilitação.
Isto não aconteceu.
Como o prazo estabelecido nos artigos 2º e 68 da Lei 1.079 está flagrantemente superado pelo artigo 52 da Constituição de 1988, que determina a condenação por oito anos, Lewandowski preferiu fazer uma colcha de retalhos jurídica, utilizando as partes da Constituição, da Lei 1.079 e do regimento que julgava mais conveniente para amenizar a condenação da ré.
Em resumo, ao colocar em destaque “ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de oito anos”, Lewandowski armou uma grande arapuca para os senadores:
1) Tornou possível a manutenção jamais prevista da habilitação.
2) Vinculou a opção pela inabilitação a oito anos, um período relativamente grande.
Com isso, havendo a oportunidade de escolher entre a manutenção da habilitação e a longa inabilitação por 8 anos, senadores já satisfeitos com o impeachment poderiam se compadecer de Dilma mais facilmente. (…)
(Continuação da análise original: AQUI.)
II. A quarta opção do STF
Este blog listou no post anterior 3 opções básicas do STF na decisão ainda não tomada sobre os mandados de segurança contra o fatiamento inconstitucional e a favor da inabilitação de Dilma. Agora indica uma quarta, que, na verdade, é uma simples derivação lógica da hipótese 2 original:
Manter o impeachment, anulando apenas a segunda votação, mas determinando que esta seja refeita (e eventualmente como refazê-la).
Neste caso, o STF admitiria a tese esdrúxula de Lewandowski e seus assessores sobre o artigo 52, mas não a interpretação esdrúxula da Lei 1.079 em relação ao modo como a votação deveria ser feita.
Na prática, seria uma maneira de legitimar a primeira votação, evitando novos recursos da defesa de Dilma em relação ao resultado do impeachment, e de abrir a possibilidade (igualmente esdrúxula, reitero) de que o Senado discuta, por exemplo, o prazo de inabilitação da petista até o limite máximo de oito anos, de preferência impondo como prazo mínimo o período até as próximas eleições presidenciais para evitar a possibilidade ainda mais esdrúxula de que um(a) presidente possa voltar ao seu próprio governo em outro cargo após ser afastado por crime de responsabilidade.
Reiteiro que também isto, claro, iria contra a decisão do MS do caso Collor, na qual a PGR, com endosso do relator Carlos Velloso, apontava que a CF de 1988 revogou o trecho da Lei 1.079 sobre o prazo da inabilitação ao fixá-lo em oito anos “sem possibilidade de graduação”.
Diante de tamanho imbróglio, manter tudo como está (hipótese 3) ainda é a solução mais provável em se tratando de uma Corte corporativista, condescendente e formada por maioria indicada por presidentes petistas.
Convém a nós, brasileiros, no entanto, lutar sempre pelo melhor, preparados para o pior.
Felipe Moura Brasil ⎯ https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil
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