Entenda por que Dilma cometeu o crime das “pedaladas fiscais” – e FHC e Lula, não
Blog explica passo a passo e entrevista o procurador que apontou as irregularidades
1) Imagine que você dê 2.000 reais por mês a uma empregada para fazer as suas compras de supermercado.
Com os preços em alta, a última compra do mês dá 250 reais, mas ela nota que só sobraram 50 reais do dinheiro que você havia dado.
Como ela sabe que não tem mais comida na sua geladeira, ela tira 200 reais do próprio bolso para ajudar você a pagar a conta.
No dia seguinte, ela lhe mostra as notas das compras, informa que gastou 200 reais do próprio dinheiro e você repõe o valor.
Ou seja: você paga 200 reais à empregada para quitar a sua dívida com ela – e almoça feliz.
Se você não tem o dinheiro na hora, diz que paga no dia seguinte ou depois, mas logo paga.
E ela aceita, sem problemas, porque vocês já têm uma relação antiga de confiança.
Isto é uma coisa.
2) Agora imagine que sua empregada gaste os 2.000 reais das compras do mês e você não reponha nem um centavo do valor.
No mês seguinte, mais uma vez ela gasta 2.000 reais, enquanto você compra presentes aos amigos, prometendo-lhes mais presentes para o ano que vem.
No outro mês, de novo. Mais um mês igual. E outro. E vários outros também, sem reposição.
Por mais de um ano, a empregada paga todas as suas compras de supermercado, enquanto você promete mundos e fundos aos outros, literalmente.
Sem querer, ela passa a financiar uma parte das suas despesas, enquanto você usa em novas despesas o dinheiro que deveria cobrir essa parte.
Isto é coisa bastante distinta do caso 1.
Na vida real, claro, a empregada já teria pedido demissão e talvez entrado com uma ação na Justiça.
3) A Caixa Econômica Federal é a “empregada” do governo.
O banco público é contratado para realizar os pagamentos dos benefícios de parte da população brasileira, como abono salarial, seguro-desemprego e Bolsa Família. Obviamente, precisa ser remunerado pelos serviços prestados.
Assim como você dá 2.000 reais à empregada para as compras do mês, o governo dá, por meio do Tesouro Nacional, 500 milhões de reais à Caixa para realizar os pagamentos de benefícios. O valor, assim como o do supermercado, é uma estimativa dos custos.
Se no dia do pagamento final, aparecerem pessoas para sacar um total de 505 milhões de reais, a Caixa não vai fechar o guichê às 15h40 e dizer que não tem dinheiro. Ela paga os 5 milhões de reais faltantes, no dia seguinte comunica ao Tesouro, e o Tesouro repõe o valor.
Na época de FHC e Lula, isto aconteceu algumas vezes e os valores foram logo repostos, assim como você repôs o gasto da sua empregada.
Isto é parte da relação contratual entre o governo e a Caixa.
4) Já Dilma Rousseff deixou a “empregada” arcando com praticamente todas as referidas despesas do governo a partir do segundo semestre de 2013 e durante todo o ano eleitoral de 2014, enquanto gastava os bilhões de reais devidos à Caixa em programas eleitoreiros, prometendo mundos e fundos ao povo para 2015, 2016, 2017 e 2018.
Isto não é só bastante distinto dos casos de Lula e FHC. Isto foi inédito na história do Brasil.
A Caixa foi forçada a financiar o governo por causa do procedimento que ficou conhecido como “pedaladas fiscais”.
O rombo produzido em 2014 foi tão grande que Dilma continuou deixando de quitar sua dívida (“pedalando”, portanto) com a “empregada” em 2015.
Resultado 1: a Caixa entrou na Justiça contra o governo no ano passado para reaver pelo menos 274 milhões de reais.
Resultado 2: o processo de impeachment de Dilma foi aberto, incluindo a denúncia das “pedaladas”.
Resultado 3: o governo Dilma decretou sigilo sobre o tamanho exato da dívida e quem são os devedores de taxas destinadas à Caixa por conta da administração de fundos e programas sociais.
Ou seja: o governo ameaçado de impeachment ainda tenta acobertar os crimes que cometeu.
5) O site “Aos Fatos” publicou nesta segunda-feira a seguinte manchete:
“Dilma ‘pedalou’ 35 vezes mais que Lula e FHC juntos”.
A matéria inclui tabelas que mostram quando houve atraso nos pagamentos feitos pelos governos FHC, Lula e Dilma à Caixa Econômica Federal e quanto cada um deles ficou devendo na ocasião à “empregada” (para usar a metáfora deste blog).
Ou seja: igualou a natureza dos atrasos nos três casos e somou os valores da dívida de cada um.
FHC atrasou quatro vezes — uma em setembro de 1996 e três em 2002 (janeiro, abril e junho) — , totalizando R$ 433,2 milhões.
Lula atrasou três vezes — em setembro e novembro de 2003, e novembro de 2006 — , totalizando R$ 500 milhões.
Dilma “foi quem teve, disparado, o saldo mais negativo na Caixa: R$ 33 bilhões, com 19 “pedaladas” em todos os anos de seu governo, mais notoriamente em 2014 (oito vezes), ano de sua reeleição. Os dados cobrem até outubro de 2015.”
O site de verificação de fatos classifica então como “exagerada” a seguinte afirmação de Dilma (que também é a base da defesa feita por José Eduardo Cardozo, advogado-geral da União, na comissão especial do impeachment):
“O meu impeachment, baseado nisso, significaria que todos os governos anteriores ao meu teriam de ter sofrido impeachment, porque todos eles, sem exceção, praticaram atos iguais ao que eu pratiquei, e sempre com respaldo legal.”
Este blog, no entanto, classifica como simples mentira esta afirmação de Dilma e como impreciso o título da matéria do site “Aos fatos” (ainda que meritória em suas informações).
A diferença das manobras de Dilma para as de Lula e FHC não é (só) de grau, mas de natureza.
6) Entrevista
Sendo assim, este blog fez a seguinte entrevista com o procurador Julio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público de Contas, responsável pelo relatório sobre as irregularidades fiscais de Dilma que levou à reprovação das contas de 2014 do governo pelo Tribunal de Contas da União (TCU):
Felipe Moura Brasil: O senhor havia negado, em entrevista à BBC em setembro de 2015, que as pedaladas fiscais já tinham sido usadas antes em volumes menores, porque, na verdade, o Tesouro basicamente repunha o valor devido pelo governo à Caixa. Ou seja: dizer que Dilma pedalou 35 vezes mais que FHC e Lula, na verdade, é uma força de expressão porque a própria natureza das manobras é distinta, correto?
Julio Marcelo: Exato. Pequenos saldos devedores, de dois a três dias de duração, não é pedalada porque não tem a finalidade de obtenção de um financiamento forçado junto ao banco público federal, é apenas a regular relação contratual entre Tesouro e o banco prestador do serviço.
O que a Presidente Dilma fez e que seus antecessores não fizeram foi sistemática e deliberadamente deixar de enviar bilhões de reais a esses bancos e exigir que eles suportassem obrigações do Tesouro com seus próprios recursos, usando-os como cheque especial.
Com esse artifício, inédito, ela direcionou esses bilhões para outras despesas com forte impacto eleitoral, como o FIES, que teve sua dotação ampliada de 5 bilhões em 2013 para mais de 12 bilhões em 2014, ano eleitoral, voltando a cair para menos da metade em 2015. As pedaladas de 2015 resultaram do imenso rombo produzido em 2014, com direito a algum agravamento.
Felipe Moura Brasil: O sigilo decretado pelo governo sobre dados das “pedaladas” pode esconder algo mais que ainda não foi observado pelo MP de Contas e pelo TCU?
Julio Marcelo: O governo está devendo tarifas à Caixa pela prestação de serviços. Esse valor deve estar aumentando. O sigilo é indevido e absurdo.
Felipe Moura Brasil: O que os parlamentares devem considerar na análise das “pedaladas”?
Julio Marcelo: Uma coisa que merece destaque é que não existe nenhuma necessidade de o TCU examinar as pedaladas de 2015 para que elas sejam consideradas pelos parlamentares para o impeachment. Porque a Constituição não exige. Nenhuma lei exige. O que interessa são os fatos. O TCU ter falado de 2014 apenas reforça. Imagine que ela (Dilma) cometa um crime de responsabilidade hoje, então só quando o TCU examinar em 2017 alguém vai poder apontar o crime? As contas de 2015 nem foram prestadas ainda ao TCU, mas os atos praticados têm suas consequências independentemente disso.
Exato.
Dilma tem de ser demitida já.
7) Crime de responsabilidade
Este blog acrescenta trechos do pedido de impeachment assinado por Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr. (íntegra aqui):
“As operações de crédito firmadas com a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil não só não estavam autorizadas, como eram expressamente vedadas pelo artigo 36, ‘caput’, da Lei de Responsabilidade Fiscal, in verbis:
Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
(…) Também o artigo 38 da Lei de Responsabilidade Fiscal veda expressamente a realização de crédito por antecipação, enquanto existir operação da mesma natureza não resgatada, sendo certo que coíbe esse tipo de operação no último ano de mandato do Presidente, do Governador ou do Prefeito Municipal. Confira-se:
‘Art. 38. A operação de crédito por antecipação de receita destina-se a atender insuficiência de caixa durante o exercício financeiro e cumprirá as exigências mencionadas no art. 32 e mais as seguintes:
(…)
IV – estará proibida:
a) enquanto existir operação anterior da mesma natureza não integralmente resgatada;
b) no último ano de mandato do Presidente, Governador ou Prefeito Municipal.’
Ainda que o Governo Federal estivesse autorizado a realizar operações de crédito com bancos públicos (e não está), jamais poderia efetuá-las, sucessivamente, ou seja, sem resgatar as anteriores e, frise-se, em nenhuma hipótese, poderia ter aceitado a antecipação de receita no último ano de mandato da Presidente da República, como ocorrera no caso dos autos. A proibição, portanto, é tripla!
Como consignado na denúncia, além de caracterizar crimes comuns, as chamadas pedaladas fiscais caracterizam crimes de responsabilidade, uma vez que o artigo 85 da Constituição Federal determina que:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(…) V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
(…) A Lei 1.079/50, por sua vez, que confere concretude material e formal a esse dispositivo constitucional, estatui, em seu artigo 4º.:
Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:
(…) V – A probidade na administração;
VI – A lei orçamentária;
Nota-se que tanto a Constituição Federal, assim como o artigo 4º. da Lei 1.079/50, dizem ensejar o impedimento do Presidente da República o fato de este atentar contra a probidade na Administração e contra a lei orçamentária.
No entanto, por força de alterações ocasionadas pela Lei 10.028/00, a clareza da ocorrência do crime de responsabilidade resta ainda maior, pois o artigo 10 passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 10. São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária:
(…) 6) ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal;
7) deixar de promover ou de ordenar na forma da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei;
8) deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro;
9) ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente;
(…) Art. 11. São crimes de responsabilidade contra a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos:
(…) 3) contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal;
Desde logo é importante consignar que o simples fato de ter a Presidente descumprido os comandos dos artigos 36 e 38 da Lei de Responsabilidade Fiscal e, mediante tal prática, incorrido nos crimes capitulados nos artigos 359-A e 359-C do Código Penal, já seria suficiente para caracterizar o crime de responsabilidade. No entanto, as práticas constatadas pelo Tribunal de Contas da União realizam, perfeitamente, os crimes previstos na Lei 1.079/50.”
Felipe Moura Brasil ⎯ https://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil
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