Extravagante e dona de um temperamento pouco cordial, Charlotte não era uma criatura simples. Assim a autora Julia Quinn, criadora da saga Bridgerton, e Shonda Rhimes, a poderosa produtora da TV americana, descrevem a alemã Sophie Charlotte de Mecklenburg-Strelitz (1744-1818) no livro Rainha Charlotte, que acaba de chegar ao Brasil pela editora Arqueiro — lançamento assinado por ambas e que acompanha a estreia da série de mesmo nome da Netflix. A descrição concisa e afiada cabe tanto para a monarca, que reinou ao lado do marido, o rei George III (1738-1820), na Inglaterra do fim do século XVIII, quanto para o apetitoso derivado do universo Bridgerton: amparada pela fórmula folhetinesca de Shonda e por pinceladas de fatos históricos surpreendentes, a série ultrapassa a linha do entretenimento vazio para dar aos personagens da vida real a chance de ir além dos estereótipos que os acompanham nos livros de história. Isso tudo, claro, envolto por uma generosa camada de romance açucarado.
Nascida em Mirow, uma pequena província da Alemanha, Charlotte tinha 17 anos quando chegou à Inglaterra apenas seis horas antes de seu casamento com o rei, a quem conheceu no altar — na série, os dois ganham a chance de flertar antes da cerimônia, quando ela tenta fugir do matrimônio. A pressa pela união e a vinda de Charlotte de um lugar longínquo se revelariam uma tática para ocultar um dilema: George III sofria de um distúrbio mental até hoje desconhecido. Teorias sugerem desde uma doença genética que afetava o cérebro, como porfiria, até transtornos como bipolaridade ou esquizofrenia. Ao longo de seus 81 anos, ele intercalou momentos de lucidez e de delírio, que lhe garantiram o infame apelido de “rei louco”.
Na pele do charmoso ator Corey Mylchreest, George III ganha cores mais empáticas — especialmente quando é submetido aos horrores dos tratamentos psiquiátricos da época. “Desenvolvemos comportamentos que eram ambíguos, mas de um jeito respeitoso”, disse Shonda a VEJA sobre a construção do personagem (leia mais abaixo). Na prática, Charlotte desempenhou o papel de monarca mais do que o marido. Sua popularidade entre a aristocracia, porém, era baixa. A razão é explicada por outra teoria sem comprovação e que aquece as rodas de historiadores europeus: a rainha seria alvo de racismo por seu tom de pele mais escuro.
Interpretada pela branca Helen Mirren no filme As Loucuras do Rei George (1994), a rainha Charlotte é vivida na saga Bridgerton pelas atrizes negras Golda Rosheuvel, na maturidade, e por India Amarteifio na juventude. Os indícios de que Charlotte teria sido a primeira negra na realeza britânica (e não Meghan Markle) são vários, mas inconclusivos. Entre as pistas estão retratos dissonantes que a apresentam ora com uma aparência, ora com outra — em alguns deles, ela tem traços africanos, cabelo crespo e tom de pele escuro. Era comum que os retratistas da época amenizassem “defeitos” da aparência da família real — parte dos historiadores, então, argumenta que ela passou por um processo de embranquecimento. Um lado oposto sugere que pintores abolicionistas tentaram escurecê-la em meio a movimentos contra a escravidão. A maior evidência, porém, vem do relato de um médico da rainha, o qual escreveu que ela tinha “cara de mulata”. Apesar de ser alemã, Charlotte era fruto da miscelânea das famílias reais europeias, entre elas um ramo da nobreza portuguesa que se envolveu com mouros séculos antes. Se algum dia essa ligação for comprovada, a família real inglesa — acusada de racismo no imbróglio com Meghan e Harry — terá de aceitar que em suas veias corre não só sangue azul, como também africano: a rainha Vitória (1819-1901), tataravó de Elizabeth II, era neta de Charlotte.
Além de colocar mais fogo na polêmica, a série da Netflix especula quem foi Charlotte. Sabe-se que a rainha gostava de perucas e vestidos exuberantes, que vivia cercada por cachorros e cheirava tabaco em pó diariamente. Apaixonada por artes, “descobriu” ninguém menos que Mozart quando ele tinha apenas 8 anos. Foi também, ao que tudo indica, apaixonada pelo marido. Tiveram quinze filhos — dos quais treze chegaram à vida adulta. Mesmo afeita ao luxo, ela ajudou a criar um lar aconchegante para as necessidades do rei no palácio de Kew, residência de campo afastada da agitação de Londres. O amor tem razões misteriosas — e uma dose de loucura.
“Uma rainha negra incomoda”
Shonda Rhimes, de 53 anos, falou a VEJA sobre a série Rainha Charlotte: uma História Bridgerton.
Entre suas criações, como Grey’s Anatomy e Scandal, o universo Bridgerton destoa. Como foi desenvolvê-lo? Apesar de diferentes entre si, as minhas séries no fundo são sobre mulheres que assumem a força de seu poder pessoal. Nesta série, quis transitar pelo glamour da realeza e o drama dos bastidores.
Como foi escrever sobre o transtorno mental que acometeu o rei George III? Ninguém sabe ao certo o que ele tinha. Se era uma doença física, ou mental. Então tive muito cuidado ao desenhá-lo. Desenvolvemos comportamentos que eram ambíguos, mas de um jeito respeitoso, distante da ideia do “rei louco”.
O que mais a surpreendeu na pesquisa histórica para o roteiro? Ao que tudo indica, Charlotte e o rei George III realmente foram apaixonados. Achei isso lindo, pois, na minha cabeça, imaginei que era uma relação de pura obrigação. Também me surpreendi com a simplicidade do palácio de Kew, onde o rei viveu. Conseguiram lhe garantir uma vida mais simples.
A aparência da rainha é tema polêmico entre historiadores — muitos acreditam que ela era negra. Como vê essa discussão? Fico fascinada com a necessidade que muitas pessoas têm de lutar contra a teoria de que ela tinha um tom de pele mais escuro. A pergunta que fica na verdade é: por que uma rainha negra incomoda tanto? Sendo assim, nós optamos por abraçar essa ideia e mostrar toda a beleza de uma mulher negra, como seu cabelo natural e abundante em cena.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840
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