Simpático e um tanto tímido, Asher (Nathan Fielder) tem certeza que é uma boa pessoa. Sua esposa, Whitney (Emma Stone), reforça com frequência essa crença. Apresentadores de um reality que renova casas em um bairro latino no Novo México, os dois querem fazer do local humilde um modelo de moradia sustentável e social. Eles até vivem ali em uma casa revestida por espelhos a pretexto de refletir a comunidade ao redor — por dentro, porém, o imóvel é um luxo. A cada boa ação praticada pelo casal, a ácida série The Curse, novidade do Paramount+, oferece uma janela de hipocrisia por trás de tanta fachada. Caso do evento que dá nome ao programa — “a maldição”, em português.
Diante das câmeras, Asher entrega 100 dólares a uma menina negra vendendo refrigerantes na rua. O êxtase dela não dura muito: ao findar a cena, o rapaz, educadíssimo, pede a doação de volta, mas garante que adoraria contribuir lhe dando 20 dólares assim que trocar o dinheiro por notas menores. Indignada, a garota faz um gesto com a mão e o amaldiçoa — ato que se mistura às consequências sofridas pelo casal ao longo de dez episódios.
Se Emma Stone garante à série o brilho da estrela de Hollywood, é Nathan Fielder quem carrega o nome de novo autor original da TV. Criador do programa, o humorista, ator e roteirista canadense de 40 anos virou sensação ao desenvolver reality shows que desafiam o termo “peculiar”. Em Nathan for You, exibido pelo Comedy Central entre 2013 e 2017, ele usa o diploma em gestão de negócios — carreira que abandonou pelos palcos de stand-up — para aconselhar empreendedores numa sátira sobre os métodos de coaches sabichões. Sua veia irônica ganhou tons dramáticos em O Ensaio (2022), da HBO, trama na qual ele ajuda pessoas a ensaiar, literalmente, para um momento desafiador. Os dilemas vão desde um homem com um segredo a ser revelado até uma mulher em dúvida sobre ser mãe — Fielder a coloca em uma casa vigiada com atores mirins que se passam por filhos em diferentes fases.
Não se trata, contudo, de um humor raso: o roteirista é versado em entrelinhas, desenhando críticas e questões complexas entre uma cena e outra. Em The Curse, ele alfineta a cultura do “white saviour”, no qual brancos se autovangloriam por ajudar minorias. Apesar do assistencialismo barato, os protagonistas querem genuinamente fazer a diferença. O desejo sai pela culatra quando o abismo social e cultural entre eles e os moradores se acentua. Logo, os simpáticos intrusos fazem valer o dito popular que garante: de boas intenções, o inferno está cheio.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867