Astuta e durona, Furiosa merece o nome que lhe foi dado. Em um mundo apocalíptico e violento, a menina vive num raro oásis oculto governado por mulheres. Quando a localização secreta é colocada em risco, ela tenta expulsar intrusos, mas acaba capturada. Sua longa trajetória de quase vinte anos na busca pelo caminho de volta ao lar é o combustível de Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Mad Max Saga, Austrália, 2024), que estreia nos cinemas na quinta-feira 23. Personagem que roubou o protagonismo do policial Max, que dá nome à franquia — vivido por Mel Gibson no passado e, mais recentemente, por Tom Hardy —, Furiosa se impôs como uma força da natureza no longa anterior, o acachapante Mad Max: Estrada da Fúria (2015), então interpretada por Charlize Theron. A popularidade fez com que ela ganhasse um filme sobre sua juventude — agora vivida com excesso de carisma por Alyla Browne na infância, e pura ferocidade nas mãos de Anya Taylor-Joy na adolescência.
A dura jornada de Furiosa na tela encontrou eco nos bastidores: criação do diretor australiano George Miller, Mad Max inaugurou o cinema pós-apocalíptico em 1979 e passou por altos e baixos até chegar, agora, ao quinto filme. Segundo o cineasta, a longevidade da saga não foi planejada: assim como as perseguições incansáveis que conduzem seus filmes, Miller sente os personagens desse universo em seu encalço. “Eu tinha a história de Estrada da Fúria dentro de mim”, disse ele a VEJA sobre a elogiada superprodução que levou quinze anos para sair da gaveta e ganhou seis estatuetas do Oscar (leia a entrevista abaixo). O período foi essencial para um importante alinhamento do roteiro no qual escravas sexuais fogem do cativeiro de um tirano. “Elas não poderiam ser salvas por um homem, e sim por outra mulher. Assim nasceu Furiosa”, conclui o diretor.
Dominado por brutamontes, o cinema de ação, especialmente em seu substrato distópico, não costuma ser gentil com o sexo feminino. Mad Max era exemplo fidedigno de tal regra. Na trama iniciada em 1979, Max (um Mel Gibson ainda desconhecido) persegue a gangue que matou de forma brutal sua esposa e seu filho. Em uma crise desencadeada pela escassez de combustíveis, o mundo árido, sem leis e de violência abundante, explorava a fragilidade física das mulheres — hostilidade que se repete no caótico Mad Max 2 — A Caçada Continua (1981). A partir do terceiro longa, a virada: em Mad Max — Além da Cúpula do Trovão (1985), o policial não precisa salvar nem vingar uma donzela vitimizada, mas, sim, enfrentar uma vilã poderosa, encarnada pela cantora Tina Turner. O salto de lá para Estrada da Fúria e, consequentemente, Furiosa foi paulatino, mas recompensador.
No novo filme, Furiosa é sequestrada pelo desequilibrado Dementus, interpretado por Chris Hemsworth (numa tentativa desesperada para se desvencilhar da fama do herói Thor). Eventualmente, a garota acaba na Cidadela controlada por Immortan Joe (Lachy Hulme). Enquanto os dois brucutus trocam farpas, Furiosa pavimenta seu caminho por respeito em meio a uma horda de homens explosivos — entre eles, alguns aliados, como o condutor que a treina para dirigir o caminhão. O aprendizado constante de Furiosa reflete a personalidade de Miller, um curioso adepto da evolução pessoal e profissional.
O diretor, que abandonou a medicina para se embrenhar no cinema, já fez de tudo um pouco: do drama O Óleo de Lorenzo (1992) aos infantis Babe — O Porquinho Atrapalhado (1995) e Happy Feet (2006), Miller demonstra interesse por personagens que, apesar da solitude ou da opressão, enfrentam desafios maiores do que eles — e saem transformados do outro lado. Assim, aos 70 anos de idade, o diretor se viu aprendendo sobre feminismo. Quando rodava Estrada da Fúria, ele levou ao set a ativista Eve Ensler — autora da peça Os Monólogos da Vagina — para ministrar um workshop sobre a violência contra a mulher em zonas de guerra. Miller ainda reforçou o time feminino nos bastidores e entregou para a esposa, Margaret Sixel, a montagem dos dois últimos filmes — trabalho que deu a ela o Oscar de edição com Estrada da Fúria. Por se passar antes do longa frenético de 2015, Furiosa segue um ritmo mais lento (mas nenhum pouco enfadonho), que mostra a evolução do maquinário usado em cena. Um sexto Mad Max é esperado — e nada indica que a saga apocalíptica deixará de acelerar fundo em seu feminismo.
“Eu seguiria a furiosa no fim do mundo”
O diretor australiano George Miller, de 79 anos, fala a VEJA sobre o quinto filme da saga Mad Max.
Em filmes apocalípticos, o mundo é dominado por homens, e mulheres costumam ser as que mais sofrem. Por que optou por mudar essa dinâmica? Eu tinha a história de Estrada da Fúria dentro de mim, sobre o resgate de mulheres presas por um tirano. Mas elas não poderiam ser salvas por um homem, e sim por outra mulher. Comecei a pesquisar e deparei com os mitos da constelação de plêiades. Da Grécia aos aborígines na Austrália, essas estrelas chamadas popularmente de Sete Irmãs são parte de lendas que envolvem a fuga de um grupo de mulheres de um homem mau. Assim nasceu a Furiosa.
Qual preparação foi feita com o elenco antes das filmagens de Furiosa? Eu prefiro efeitos práticos aos feitos com computação gráfica. Por isso, foi um preparo parecido com o dos demais filmes: muitas aulas de direção e resistência. Anya Taylor-Joy nem tinha carta de dirigir. Então ela aprendeu com um treinamento rigoroso. Ajudou na parte física o fato de que ela era bailarina na infância, então é uma atriz muito precisa e disciplinada.
Em um eventual apocalipse, quem o senhor gostaria de ter a seu lado: Max ou Furiosa? Sem dúvida, eu seguiria a Furiosa no fim do mundo. Como narra o roteiro do filme, ela cresceu numa comunidade colaborativa, ela sabe proteger o próximo. O Max é um cavaleiro solitário, que só liga para si mesmo. Ele até se envolve com outras pessoas, mas não tem as ferramentas para o trabalho em equipe.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893