Num vídeo tosco, dois homens de terno entoam um rap motivacional em que se gabam de serem ótimos negociantes de uma empresa farmacêutica. Do nada, uma terceira pessoa entra em cena vestida com uma fantasia da embalagem do remédio que a dupla comercializa. O que seria apenas mais uma produção barata e de mau gosto, feita para um encontro de representantes de vendas, se tornou evidência no tribunal: a canção incentivava a equipe a convencer médicos a aumentarem aos poucos a dose do medicamento, criando dependência nos pacientes. Além de criminosa, a prática era letal: o tal remédio consistia em nada menos do que um spray de fentanil, analgésico 100 vezes mais potente que a morfina e cinquenta vezes mais passível de causar overdose que a heroína — todas as três drogas, feitas a partir do mesmo composto psicoativo, o opioide.
O clipe chocou o júri e também o cineasta inglês David Yates, famoso por dirigir boa parte da franquia Harry Potter. “A realidade é assustadoramente mais chocante que a fantasia. Eu não acreditava que o vídeo era real”, contou o diretor a VEJA. Yates adaptou a história no intrigante filme Máfia da Dor, da Netflix, com Chris Evans e Emily Blunt interpretando vendedores que seduzem médicos com festas, sexo e propinas gordas para que eles prescrevam o spray.
O longa com cores de O Lobo de Wall Street, em que ganância e luxúria são combustíveis do crime, reforça uma leva vigorosa e provocativa de produções que se propõem a expor os bastidores (e os culpados) de um fenômeno triste: o aumento chocante de overdoses por opioides nos últimos vinte anos nos Estados Unidos. Oficialmente, a substância já ceifou mais de 1 milhão de vidas no país. Nesse número (que estimativas apontam ser muito maior) contabilizam-se mortes trágicas de celebridades que deram visibilidade ao problema, como o ator Heath Ledger (1979-2008) e o cantor Prince (1958-2016) — Matthew Perry, da série Friends, morto no sábado 28, aos 54 anos, também lutou contra o vício em opioides (mas a causa da morte ainda não foi esclarecida).
Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível
O tema foi destrinchado em documentários notáveis, como o indicado ao Oscar All the Beauty and the Bloodshed e O Crime do Século, da HBO. Mas nada se compara ao alcance de tramas ficcionalizadas com astros de Hollywood. Pouco antes de Máfia da Dor, a Netflix lançou a minissérie A Queda da Casa de Usher. Na trama afiada escrita por Mike Flanagan, nome pop do terror, e inspirada em contos clássicos de Edgar Allan Poe, uma família enriquece com a venda de um analgésico viciante após um acordo com uma entidade sobrenatural misteriosa. Mais que um retrato do poder destrutivo da droga, a minissérie alfineta a decadência moral dos Estados Unidos, expondo uma sociedade na qual o dinheiro prevalece sobre a vida humana. Os Usher contêm traços da família Sackler, que na vida real é dona da Purdue Pharma, desenvolvedora da oxicodona — substância responsável pela primeira onda de overdoses por opioides, no fim dos anos 1990. A trajetória dos Sackler pauta, ainda, a minissérie Império da Dor, da Netflix, com Matthew Broderick como o líder da família. Já os efeitos do medicamento em comunidades pobres é tema de outra ótima série, Dopesick, do Star+, com Michael Keaton na pele de um médico viciado na substância.
Os desdobramentos da crise se mostram imprevisíveis. Em 2019, executivos retratados em Máfia da Dor se tornaram os primeiros envolvidos na epidemia do vício em opioides a ser condenados judicialmente. Neste ano, a família Sackler tentou pagar 6 bilhões de dólares em um acordo que a livraria de qualquer acusação futura envolvendo vítimas da oxicodona — mas a Suprema Corte americana recusou a proposta. O valor passa longe dos 80 bilhões anuais que o governo do país vem gastando com a epidemia. Agora, o alerta se volta para o narcotráfico — que não só vem atraindo antigos usuários sem receita, como passou a misturar fentanil em drogas como a cocaína para potencializar sua força. No Brasil, estima-se que 4 milhões de pessoas já usaram opioides de forma ilegal. Como bem observou o diretor Yates, é uma realidade assustadora.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866
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