No início de 1997, a princesa Diana abraçou uma causa pouco conhecida: em viagens à Bósnia e a Angola, iluminou o trabalho dos que desativavam antigas minas terrestres de tempos de guerra e visitou sobreviventes, os quais conviviam com o preconceito das mutilações causadas pelos explosivos. Não bastasse, se propôs a caminhar por um campo minado. Usando um colete e uma viseira de proteção, a imagem da princesa em uma zona de perigo, destoando do luxo da família real (da qual ela já não fazia mais parte), impactou o mundo. Na sexta e última temporada de The Crown, que acaba de ganhar quatro novos episódios na Netflix, a caminhada serve de paralelo para uma ameaça mais subjetiva: enquanto Diana anda entre bombas, a série observa o frisson em torno das fotos dela beijando o empresário egípcio Dodi Al-Fayed. O responsável pelo clique ficou milionário atiçando a ganância de outros paparazzi. O desfecho é conhecido: em 31 de agosto do mesmo ano, aos 36 anos de idade, Diana morreu ao lado do namorado em um acidente de carro em Paris, enquanto eram perseguidos por famigerados fotógrafos.
Além de apontar para a tragédia que evidenciou os perigos da fama e do culto à celebridade (dilema que ainda assola os herdeiros William e Harry — especialmente o último, o príncipe rebelde), a metáfora do campo minado pode ser aplicada à própria série — que se encerra de vez em 14 de dezembro, com a segunda parte da temporada. Criada por Peter Morgan em 2016, The Crown somou elogios e prêmios na mesma medida em que recebeu críticas e insultos de apoiadores fervorosos da realeza britânica. Ao retratar a trajetória de altos e baixos da rainha Elizabeth II (vivida em três fases pelas atrizes Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Staunton), a série tocou em temas delicados, como traições envolvendo membros do palácio e a distância entre a ilustre família e seus súditos mortais — estes afetados por dilemas mundanos, do pânico do desemprego às dores do racismo.
Com a morte da soberana em setembro de 2022, a sensibilidade em torno do programa aumentou — até a respeitada atriz Judi Dench chamou The Crown de “sensacionalista”. Novas faíscas surgiram com a divulgação das primeiras imagens de Diana (vivida pela ótima Elizabeth Debicki) como um “fantasma” conversando com Charles (Dominic West) e a rainha após sua morte. A gritaria foi exagerada: Morgan teve de explicar o conceito de licença poética, afinal, não se tratava de uma assombração, e sim de uma alegoria da presença indelével de Diana na mente dos que a conheceram. Tal comoção, contudo, era esperada — e não passou incólume pelos bastidores. “Perdi as contas de quantas vezes eu chorei vendo essas cenas”, disse em entrevista o diretor alemão Christian Schwochow, responsável pelos três últimos episódios da primeira parte.
The Crown: Os bastidores da História (1947-1955)
Diana: Sua verdadeira história
O respeito pela amada e popular princesa é patente: a série não mostra seu corpo, e o triste momento da chegada da notícia da morte aos filhos é retratado sem falas. A longa pausa dramática entre as duas partes da sexta temporada servirá ainda para o público digerir a melancolia do luto por Diana — a série vai chegar até 2005, quando Charles e Camilla (Olivia Williams), atuais rei e rainha consorte da Inglaterra, se casam oficialmente. Ainda não se sabe o quão relevante a morte da princesa será nos capítulos finais. Na vida real, porém, as consequências são deveras conhecidas.
A rainha: A vida de Elizabeth II
Em uma crise gigantesca para a monarquia, Elizabeth II se tornou vítima de teorias conspiratórias, que apontavam a soberana como “mandante” do acidente. As acusações infundadas foram propagadas especialmente por Mohamed Al-Fayed (1929-2023), pai de Dodi: o empresário afirmava que a rainha era contra a união do filho muçulmano com a princesa — e que ela estaria grávida. Investigações independentes das autoridades inglesas e francesas apontam que a causa do acidente foi, além da perseguição dos fotógrafos, a direção imprudente do motorista, que estava alcoolizado. Na versão fantasiosa de The Crown, o bilionário Al-Fayed força o filho a interferir no itinerário de Diana, que iria para Londres, mas acabou desembarcando em Paris — onde ele a pediria em casamento. É por essa e outras escolhas controversas e ousadas no roteiro que a produção cativa fãs e atiça os detratores de plantão.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868
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