No chalé isolado nos Alpes onde vive com o marido e o filho, Sandra Voyter recebe a visita de uma estudante de literatura. A moça foi entrevistá-la por uma razão palpável: Sandra é uma romancista e tradutora famosa — e seduz com seu carisma, personalidade forte e ousadia ao mesclar ficção com realidade nos livros. Acostumada aos holofotes, ela está prestes a dar mais um show intelectual. Mal a conversa se inicia, porém, vem o balde de água fria: o ambiente é invadido por uma música insuportável, tocada em volume provocativo. “É meu marido trabalhando”, diz Sandra, com olhar aborrecido. A tiete literária então vai embora, enxotada pelo barulho. Na sequência, a escritora sobe ao andar de cima, enquanto o filho, deficiente visual, sai para passear na neve com seu cão. Ao retornar, a criança desaba diante da cena que dá título ao acachapante Anatomia de uma Queda (Anatomie d’une Chute, França, 2023), que chega aos cinemas na quinta-feira 25: o corpo de Samuel, o marido inconveniente, jaz em meio à neve e ao sangue debaixo da janela do chalé. Os fatos sugerem assassinato. A única suspeita: a própria Sandra.
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Criada em conjunto com sua intérprete, a atriz alemã Sandra Hüller (extraordinária em cada cena), a protagonista de Anatomia de uma Queda não destoa de outras personagens dos filmes da diretora francesa Justine Triet. Nos quatro longas que realizou, a cineasta de 45 anos nunca pôs a mulher em posição de fragilidade — se há tantos filmes por aí que as mostram sendo abusadas ou mortas pelos homens, disse em entrevista recente, ela não vê razão para seguir o mesmo caminho. No caso da escritora julgada na cidade francesa de Grenoble por supostamente matar o marido com um golpe na cabeça e um empurrão janela abaixo, a força feminina só torna o suspense mais aflitivo e de desenlace imprevisível perante o júri.
A fibra de Sandra Voyter introduz na trama, na verdade, um elemento mais disruptivo: a perspectiva de um julgamento no qual é uma mulher em posição dominante, e não homem, quem está no banco dos réus por um crime passional. À maneira da regente abusiva vivida por Cate Blanchett em Tár (2022), outro filme que dinamita lugares-comuns sobre feminismo e machismo, Sandra não sofre da falta de autoestima. Questionada por que mentiu sobre detalhes da morte, ela admite sem remorso que o fez para não se incriminar; acusada de roubar a ideia de um romance que o errático Samuel (o francês Samuel Theis) abandonara, frisa que transformou o argumento de poucas páginas num romance de mais de 300. E dá de ombros, como quem não se vê obrigada a pagar pela insegurança de um macho.
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Anatomia de uma Queda tem a subversão dos papéis de gênero como diferencial — mas não foi só em razão disso que Justine Triet se consagrou em 2023 como a terceira mulher na história a levar a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes. Da figura ambígua de Sandra se extrai um thriller de tribunal de primeira, em que cada certeza vai sendo demolida diante de novas revelações. Quando uma briga do casal gravada em segredo pelo marido vem à tona, a escritora é vista como mulher gélida. Mas o áudio também evidencia que Samuel era uma figura infantil e difícil. O filho Daniel (Milo Machado Graner), de 9 anos, é também uma interrogação: seu turbilhão de sentimentos nubla a memória sobre o dia da morte do pai.
Como única testemunha, Daniel tem o destino da mãe em suas mãos. A Justiça tenta protegê-lo da influência de Sandra, mas é impossível livrá-lo não só dela, como do circo da mídia e das redes. A reação pública ao caso, aliás, é lapidar. A exemplo de sua intérprete, a escritora é alemã e prefere se comunicar em inglês — o que causa antipatia e tensões, já que ela e o filho têm de falar em francês na corte (essa ironia idiomática, dizem as más línguas, fez o filme ser preterido na escolha do representante da França ao Oscar). Como se veria em qualquer lugar, o peso das aparências também é imenso: a hipótese de uma autora conhecida matar o marido é mais sedutora, afinal, que a versão proposta pela defesa, de que o Samuel teria se suicidado. Firme e imperscrutável, Sandra é um enigma difícil de julgar.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876