Exauridos da participação na I Guerra, os ex-combatentes Burt Berendsen (Christian Bale) e Harold Woodman (John David Washington) se juntam à enfermeira Valerie Voze (Margot Robbie) para celebrar o fim do conflito num baile em Amsterdã, na Holanda. O clima reflete a euforia que, nos chamados “loucos anos 1930”, se seguiu ao fim da luta na Europa. O trio está alheio, porém, ao que ocorre nos bastidores do poder: a ascensão do fascismo, um insidioso mal que começava a ser gestado na Europa e dali a alguns anos levaria à experiência brutal da II Guerra. Dirigido por David O. Russell, o filme Amsterdam (Canadá/Estados Unidos, 2022), já em cartaz nos cinemas, mistura comédia de erros e fatos para refletir sobre as encruzilhadas que se impõem à humanidade de tempos em tempos — e são capazes de mudar os rumos da história.
Ao lado do trio de ex-combatentes, outro personagem importante é o general Gil Dillenbeck, um respeitado militar frequentemente assediado por ricaços — os quais, embora não digam de forma explícita, pretendem dar um golpe nos Estados Unidos. O papel, defendido na tela com bravura por Robert De Niro, foi inspirado em Smedley Butler, oficial que teria sido convidado a liderar uma tentativa de assassinato do presidente Franklin D. Roosevelt, com a meta de instalar um Estado fascista no país. Butler resistiu e se tornou um símbolo da luta contra o regimes totalitários. Qualquer semelhança da trama com o flerte dos Estados Unidos com a extrema direita e ideias supremacistas no recente governo de Donald Trump não é mera coincidência.
Obras que imaginam como o mundo seria caso movimentos de tendência fascistas tivessem corroído a democracia americana se tornaram um excelente filão na TV. É o caso da minissérie Complô contra a América (HBO Max), inspirada no livro de Philip Roth e que explora o que teria acontecido se o popular aviador Charles Lindbergh derrotasse Roosevelt na eleição de 1940, instaurando um regime pró-Hitler no país. Já na série O Homem do Castelo Alto (Amazon Prime Video), que é baseada no romance de Philip K. Dick, o enredo é sobre o que teria ocorrido se os americanos perdessem a II Guerra, transformando-se num novo Reich. Em comum, todas essas histórias exaltam a ação de pessoas comuns que mudaram a história. “Temos de acreditar na força delas, porque a outra alternativa seria desistir”, disse Christian Bale a VEJA. “Esta é a beleza de Amsterdam: são pessoas simples que não desistem e realizam coisas extraordinárias.”
Narrado de modo não linear pelo personagem de Bale, o filme segue os três amigos a partir da capital holandesa. Ali, o trio faz um pacto de cuidar um do outro, mas a promessa é quebrada por Valerie, que decide se afastar. Desolados, Burt e Harold retornam aos Estados Unidos para retomar a vida deles. O primeiro, como médico que cuida de veteranos de guerra, e o segundo, como advogado especializado em direitos civis. Anos depois, os dois são reunidos por Elizabeth Meekins (a cantora Taylor Swift, impagável), filha de um senador morto misteriosamente, que os escala para descobrir o que teria vitimado o pai. Tudo sai errado: os dois acabam acusados de um crime que não cometeram e fogem para tentar provar sua inocência. No caminho, são envolvidos numa intriga internacional com sociedades secretas, políticos graúdos — e até o presidente americano.
O enredo segue a toada de reviravoltas que tradicionalmente caracteriza os filmes de Russell, como Trapaça (2013) e Joy: o Nome do Sucesso (2015). Para abrigar um elenco estelar que vai do comediante Chris Rock a Anya Taylor-Joy, contudo, o roteiro acaba se desviando mais do que deveria em subtramas dispensáveis. De qualquer forma, um filme de Russell é sempre um convite irresistível ao riso ácido. E aqui o diretor vem com um alerta tão urgente quanto atual: em tempos de tentações neofascistas no ar, não se pode baixar a guarda.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810
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