Na hierarquia do mundo diplomático, o embaixador conta com respaldo de um vice, o qual é chamado de número 2. A nomenclatura ganhou significado extra na série A Diplomata, que lança sua segunda temporada na quinta-feira 31, na Netflix: Kate (Keri Russell) foi por muitos anos número 2 de Hal (Rufus Sewell), relação profissional que virou casamento — fazendo com que ela se tornasse coadjuvante dele também na vida pessoal. A dinâmica muda drasticamente quando Kate é promovida pela Casa Branca e enviada a Londres como embaixadora americana na Inglaterra. Ela vira número 1 e seu marido, sem função oficial, se resigna ao papel de cônjuge — ou de “esposa”, como ele diz vez e outra, reproduzindo o vocabulário machista desse universo. Às esposas, ou melhor, aos cônjuges, destinam-se tarefas como a decoração da casa e a organização de eventos. Hal se esforça para apoiar Kate, mas ele não foi talhado para o segundo plano — e ela, por sua vez, tem pouco gosto pelos holofotes. “Trocar o alfa e o beta de lugar pode causar desconforto a ambos”, disse Keri Russell em entrevista a VEJA.
Na trama, o casamento conturbado anda em paralelo com tensões geopolíticas — tema que conecta um casal entusiasta da força da diplomacia. “É comum se apaixonar por alguém do trabalho que tem os mesmos interesses que você”, diz a criadora da série, Deborah Cahn. “Mas existe o perigo de que, um dia, essas pessoas discordem, se tornem rivais e até compitam pelo mesmo cargo.” Enredar nessa dinâmica o ego ferido de um homem obrigado a ser subserviente à esposa é um tempero extra do roteiro. “Hal é o fã número 1 de Kate. Ele não quer derrubá-la, mas quer ficar bonito na foto”, defende Rufus Sewell (veja a entrevista completa no vídeo a seguir).
Última fronteira da afirmação feminina, o poder político nas mãos de mulheres é tema de várias séries de TV recentes. De A Diplomata, passando pela cômica Veep à dinamarquesa Borgen e até a fantasiosa A Casa do Dragão, essas narrativas expõem estruturas antiquadas de ambientes de poder tipicamente masculino. Um exemplo peculiar da dinâmica é retratado em A Casa do Dragão: enquanto Rhaenyra Targaryen (Emma D’Arcy) briga por seu direito ao trono na série da HBO, ela enfrenta o ciúme do marido Daemon (Matt Smith), que almeja a coroa. Na segunda temporada, exibida neste ano, uma cena emblemática mostra o personagem à frente de um exército, se ajoelhando após muitas recusas perante Rhaenyra, assumindo sua submissão. Curiosamente, o mesmo ator encarnou outro príncipe obrigado a se curvar a uma rainha: Smith deu vida a Philip, cônjuge de Elizabeth II em The Crown, que não achava correto, em 1953, um marido se rebaixar perante a esposa — mesmo sendo a cerimônia de coroação dela. Por fim, ele se prostrou.
Já na hilária Veep, a protagonista Selina Meyer, vivida com acidez sulfúrica por Julia Louis-Dreyfus, é vice-presidente dos Estados Unidos e almeja o emprego de seu chefe. Entre os percalços do caminho estão não só a própria política atrapalhada e sua equipe, mas seu ex — que posa de amigo, mas tenta se dar bem usando como ponte sua conexão com a segunda pessoa mais poderosa do país. Quando Kamala Harris foi de vice-presidente a presidenciável nas eleições americanas, logo surgiram comparações com Veep: em determinado ponto da série, o presidente renuncia, passando a Selina o bastão e fazendo dela a primeira mulher na Presidência americana — conquista que, até agora, se resume ao campo da ficção. Na vida real, Harris depara com roteiros não tão cômicos — que chancelam a ideia por trás dessas séries: no esgoto da internet, seu marido, Douglas Emhoff, é chamado de frouxo e daí para baixo por apoiar a candidatura da esposa. Se ela ganhar, Emhoff vai assumir o título inédito na história do país de primeiro-cavalheiro.
A máquina do machismo, claro, está presente nessas séries — e o brilhantismo de cada roteiro reside em contornar o assunto sem lhe dar tanta atenção, mas não deixar que ele vença. A série dinamarquesa Borgen faz isso com primor ao mostrar que nem em um dos países mais desenvolvidos do mundo uma primeira-ministra passa imune ao julgamento masculino. Já em A Diplomata, Kate é constantemente cobrada por sua aparência e esboça sorrisos educados ao ouvir comentários sexistas de homens em posições superiores — a postura sagaz sempre antecede alguma ação da qual ela sairá por cima.
Assim, Kate e companhia quebram outro estigma das mulheres poderosas: elas se dão a chance de serem femininas e polidas, e ainda perspicazes e decididas — características que seriam sinal de fraqueza para pioneiras como Margaret Thatcher (1925-2013). A ex-primeira-ministra inglesa assumiu posturas até mais rígidas que as de seus colegas homens para reforçar a autoridade. O preço do poder é alto — e elas estão dispostas a pagá-lo.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916